“Mas calma, tu não és cozinheiro?”, perguntava o chef turco Semi Hakim no final do jantar de inauguração do festival Alentejo Food & Soul, evento de streetfood que levou alguns dos melhores cozinheiros nacionais e internacionais a Estremoz, no Alentejo, para dois dias de comida e descontração.

A pergunta do cozinheiro surgiu depois de várias horas de conversa sobre o que ia acontecer no dia seguinte — o primeiro do festival. O que ia cozinhar? O que se devia fazer primeiro? Como seria a melhor forma de apresentar o prato? Dúvidas destas foram sendo debatidas porque o Observador tinha lançado um desafio à organização: o de passar o dia atrás do fogo e das grelhas, a trabalhar lado a lado com o chef Semi. A ideia foi aceite, todos alinharam, mas o pormenor que Hakim não tinha percebido é que ao seu lado não ia estar um companheiro de profissão, muito pelo contrário. Nesse momento em que se apercebeu da situação, hesitou por, mas acabou por alinhar.

“OK, não tem problema. Vamos nisso, tenho a certeza que vai correr bem!”

Esta não era a primeira vez de Sami em Portugal, já tinha participado em alguns eventos gastronómicos como o Sangue na Guelra, por exemplo, mas o Alentejo ainda era terreno desconhecido. “Basicamente vamos fazer borrego”, explicou. Para quem não conhecia muito — ou quase nada — da região do país onde ia cozinhar, a escolha de prato foi bastante acertada. Apesar de ter um currículo muito ligado ao fine dining (passou pelos restaurantes de Sergi Arola e Martín Berasategui, por exemplo), o trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos no seu Kök Projekt, uma organização que procura promover a sustentabilidade na área da produção e consumo de comida pô-lo mais com os “pés na terra” no que a cozinha diz respeito, daí não ter estranhado a abordagem mais simples deste festival de comida de rua onde todos apenas poderiam cozinhar ao ar livre, longe das cozinhas imaculadas e super-apetrechadas a que estão habituados.

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“Vamos ter um grelhador enorme por nossa conta, vamos ter de começar cedo a prepara o fogo. Amanhã encontramo-nos às oito da manhã, OK?”

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O ponto de encontro matinal era a cozinha da Mercearia Gadanha, restaurante da chef Michele Marques, que também ia ter a sua “banca” nos claustros do Convento das Maltezas, o Centro de Ciência Viva de Estremoz — no total participaram 22 cozinheiros (3 deles estrangeiros. Um sonoro “Good Morning!” serviu quase como segundo despertador logo ao entrar na cozinha: Semi já estava em preparações, atando os nacos de borrego em forma de cilindro. “Podes começar por embrulhar isto tudo em papel de prata”, afirmou logo a seguir enquanto apontava para um tabuleiro de metal cheio de “rolos” iguais ao que tinha acabado de preparar.

“Antes de os fechares, espalha bem esta mistura de especiarias”, afirmou. Praticamente todos os ingredientes utilizados pelos chefs eram de origem local ou portuguesa — a promoção do produto nacional era um dos propósitos de todo o evento –, mas houve quem trouxesse uns truques na manga (ou na mala). Semi foi um deles: “É uma mistura de sal, pimenta, cardamomo, açúcar, alecrim e mais umas coisas que trouxe comigo”, explicou. No total seriam uns 15 quilos de carne (ou mais) massajados com esta mistura e embrulhos. Quando o trabalho ficou concluído, seguiu-se para nova tarefa. “Boa, agora só falta levar isto para o convento [que ficava a uns 500 metros do restaurante] e tratar do fogo.” Fácil, pareceu.

Já se sentia alguma urgência pelo ar quando se entrou pela primeira vez no recinto onde a festa dos próximos dias iria decorrer — a entrada era livre e as pessoas podiam comer em qualquer banca que quisessem. “O vosso grelhador está ali”, informou um rapaz da organização, apontando para o enorme caixote de metal que (felizmente, como mais tarde se iria perceber) morava debaixo de uma árvore. “Já lá está o carvão, as acendalhas e o isqueiro.”

O chef Alexandre Silva, vizinho do lado da estação onde o Observador ia passar o dia, já tinha o seu grelhador pronto e em funcionamento, com algumas pernas de borrego, lá está, a penderem de uma estrutura improvisada em cima das brasas. “Já cheira!”, comentou o líder do Loco, em Lisboa. Costuma-se dizer que “a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha”, e neste caso, o dizer popular não podia estar mais acertado: as brasas do chef Alexandre reluziam num laranja vivo enquanto “as nossas” ainda nem tinham ateado.

Foi neste momento que se deu o primeiro — como dizem os ingleses — “reality check“: atear um daqueles pequenos fogareiros domésticos é bem diferente do que fazer o mesmo numa caixa metálica com quase um metro de comprido. A meia-hora (ou mais) que se seguiu, portanto, foi prodigiosa no exercitar dos biceps, tal foi a necessidade de usar um abano improvisado, mas o resultado final fez valer cada minuto de braços doridos. “Bem, essa brasa está incrível!”, comentou o chef Hugo Brito, do Boi-Cavalo, em Lisboa, que também tinha sido convidado para participar neste Alentejo Food & Soul. Semi, quando chegou — tinha estado a preparar o hummus que também entrava no prato –, partilhou do mesmo espanto.

“Se já está tudo pronto vamos começar!”

Os claustros do Museu da Ciência Viva em Estremoz foram o palco deste Alentejo Food & Soul.©Diogo Lopes/Observador

A primeira coisa a saltar para a grelha foram as beringelas, muitas, muitas beringelas. Por instrução do cozinheiro, todas foram golpeadas — “se não o fizermos elas podem explodir com o calor” — e cozinhadas até “a pele soltar-se do recheio”. Este fruto (porque tecnicamente não é um vegetal) seria mais tarde misturado, depois de retirada a pele, com uma mistura de iogurte natural, sal, pimenta, sumo de limão e azeite para formar uma espécie de molho/papa que iria acompanhar o borrego. O resultado final, que era servido numa pequena taça, seria uma composição desta mistura com a carne, o hummus (“trouxe o tahini comigo”) e dois quartos de uma pita, também ela ligeiramente grelhada.

Assar umas beringelas pode não soar a algo muito difícil, mas nem por isso. Se há coisa que deu para perceber durante este dia foi que é mais difícil cozinhar com fogo do que parece — “Não só não podes deixar o lume esmorecer como não tens grande controlo sobre o calor que aplicasà comida, tens de estar com o dobro da atenção”, explicou Alexandre Silva, o vizinho do lado — e isso sentiu-se logo ao tentar virar as primeira beringelas. O calor que emanava do grelhador era tão intenso, dada a sua dimensão, que quase dava para ficar com uma queimadura só de estar com as mãos perto dele. Mesmo assim, centenas de pessoas iriam ter de comer (o evento calhou no mesmo dia da famosa Feira de Estremoz, um espaço de compra e venda de alimentos, animais e velharias que chama muita gente local e das redondezas, e ia haver uma corrida de touros ao final da tarde), era preciso manter as mãos na massa.

O chef turco Semi Hakin.©Diogo Lopes/Observador

Os primeiros “clientes” começaram a aparecer por volta das 12h30, mesma altura em que os primeiros rolos de borrego começavam a ser retirados do embrulho de papel de alumínio. Uma das coisas mais interessantes neste festival seria a reação dos locais à comida que seria servida. Por muito que os pratos fossem mil vezes mais simples do que qualquer coisa que estes chefs pudessem empratar de pinça, muitos decidiram utilizar ingredientes pouco usuais como kombucha (uma bebida fermentada) ou pó de cogumelos. O Alentejo é uma região muito fiel ao seu fantástico e tradicional receituário e por muito que Estremoz seja um exemplo interessante de que há espaço para a inovação em cidades tão ligadas à sua comida típica (os restaurantes Mercearia Gadanha e Alecrim são bom exemplo disso), este evento podia ser arriscado. “Dê-me só a carninha!”, disse um senhor ao passar pela banca do chef Semi. Temia-se o pior. “Tome, prove assim, tudo misturado”, ripostou o chef passando uma tigela. O ceticismo virou sorriso pouco depois da primeira garfada. Esperança renovada.

Pasta de beringela com iogurte, borrego com especiarias, hummus, pão pita e menta: O prato que o Observador ajudou a confecionar. ©Diogo Lopes/Observador

Pouco mais de uma hora depois de terem sido abertas as portas ao público, os claustros estavam repletos de pessoas. Famílias, casais jovens e mais idosos, muitos locais e até alguns estrangeiros — o chef Hugo Brito, por exemplo, contou que um casal de franceses tinha estado no seu restaurante em Lisboa no dia anterior e comentou com eles que ia participar no evento. “E não é que eles apareceram na minha banca”, disse, admirado. O calor continuava intenso (daí a importância de termos ficado debaixo da árvore) mas a ótima comida, conversa e companhia foi refresco útil. Os pratos eram servidos na hora, e como a carne tinha de estar quente, ela era mantida uma zona menos quente do grelhador. Como este ainda ficava a uns dez metros da banca onde era tudo montado e entregue aos fregueses, passaram-se várias horas e quilómetros a andar para trás e para a frente.

“A partir de agora vai ser mais fácil, já temos tudo preparado para os restantes serviços”, disse Semi pouco depois de ser servido o último cliente da manhã/tarde. Ao jantar repetia-se o atear do fogo, mas pouco mais, já que os molhos já estavam todos preparados, só precisavam de ser aquecidos na grelha. Acontece que ninguém estava bem à espera de servir tanta gente, e muitos tiveram de improvisar pratos alternativos. “Não tem problema nenhum, até é ainda mais divertido”, explicou o chef Hakim. No final do dia, as mãos queimadas e as bolhas foram compensadas pela sensação de dever cumprido.

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