Francisco Camacho tinha 24 anos em 1991 quando apresentou “O Rei no Exílio”, um solo de dança baseado na vida de D. Manuel II, último rei de Portugal. É hoje considerado um dos trabalhos fundamentais da dança portuguesa. O bailarino e coreógrafo hesita em concordar, mas reconhece que o espetáculo “teve um carácter pioneiro” porque ”propôs algo que não era muito habitual”.

A estreia foi no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e é precisamente aí que a obra vai estar nesta sexta-feira, às 21h00, para uma apresentação única, 27 anos depois e agora sob o título “O Rei no Exílio — Remake”. Trata-se de uma versão concebida em 2013, com duas diferenças principais em relação ao original.

“Em 1991, jogava mais com a justaposição entre a figura do rei e a minha própria figura. Isso ainda lá está, mas agora quis aliviar o foco nesse ponto”, explica Francisco Camacho, em entrevista ao Observador. “Reforcei a atenção no rei, no tema do exercício do poder, e eliminei alguns textos que se relacionavam com a minha biografia e as minhas características como pessoa.”

Ao mesmo tempo, introduziu textos que recolheu nos últimos anos: discursos de D. Manuel II e cartas que este enviou ou que lhe chegaram (incluindo uma carta de Salazar).

“Quando fiz a primeira versão tinha 24 anos e nessas idades a nossa experiência do mundo está muito centrada em nós. Talvez agora, com outra maturidade, consiga sair de mim e ter um outro olhar sobre as coisas”, justifica. “Além disso, voltei à peça em 2013, um ano de crise em Portugal e na Europa, com as pessoas em grande sofrimento e com muitas dificuldades. Esse contexto social também me levou a querer que o solo pudesse ajudar a pensar problemas atuais.”

É a primeira vez em 27 anos que Francisco Camacho leva a obra à sala que a viu estrear-se. A versão original circulou por vários países entre 1991 e 1997. O “remake” é de 2013 e já esteve em Coimbra, Lagos e Torres Vedras, ou em cidades como Buenos Aires e Rio de Janeiro. Mas só agora chega a Lisboa, o que resulta de uma vontade que o criador transmitiu à atual direção artística do D. Maria II.

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[vídeo de apresentação de “O Rei no Exílio — Remake”]

https://www.youtube.com/watch?v=pJPhNpLJ_6o&feature=youtu.be

Nascido em Lisboa em 1967, Francisco Camacho estudou nas escolas da Companhia Nacional de Bailado e do Ballet Gulbenkian, e em Nova Iorque passou pela estúdio de Merce Cunningham, um dos vanguardistas da dança no século XX. “O Rei no Exílio” foi criado durante a passagem pelos EUA. Depois da estreia absoluta em Lisboa, e ainda em 1991, a peça foi incluída no programa da Europália, festival cultural na Bélgica que teve Portugal como país-tema.

Foi a época em que surgiram novos coreógrafos como Vera Mantero, João Fiadeiro, Clara Andermatt ou Paulo Ribeiro, autores do que ficou conhecido como Nova Dança Portuguesa (expressão que o crítico António Pinto Ribeiro utilizou pela primeira vez nas páginas do jornal “Expresso”).

A importância do espetáculo levou a professora e crítica de dança Maria José Fazenda a dedicar-lhe uma parte da tese de doutoramento em antropologia – publicada em livro sob o título “Dança Teatral: Ideias, Experiências, Ações”, em 2007.

Ao Observador, Maria José Fazenda conta que viu “O Rei no Exílio” há 27 anos e considera que esta foi “uma da primeiras peças em Portugal que se articulavam com outras práticas que se desenvolviam nos EUA ou na Alemanha”, nomeadamente o trabalho de Merce Cunningham e Pina Bausch. Foi uma das primeiros obras independentes que surgiram fora das companhias de dança institucionais.

“Os primeiros exemplos da Nova Dança Portuguesa tinham uma expressão individual muito própria. Saíam do centro e procuravam um lugar central no que era a margem. Francisco Camacho e outros criadores tinham formação em várias linguagens artísticas, tinham estudado lá fora, faziam dança fora dos modelos”, analisa a professora. “A dança podia agora aliar-se ao teatro para dizer de si, o que era novo em Portugal. Se estivéssemos a falar de arquitetura, diríamos que foi um discurso pós-moderno.”

Por outro lado, este tem sido considerado um espetáculo “queer”, o que aponta para as temáticas da identidade. É a opinião do sociólogo João Manuel de Oliveira, segundo o qual “O Rei no Exílio” integra um conjunto de criações portuguesas em que o corpo é “permanentemente questionado, deslegitimado, desconstituído”, o que se deve à influência das teorias “queer” e em especial ao ensaio “Problemas de Género”, de Judith Butler (publicado em 1990 nos EUA e uma referência académica desde então).

Precisamente no prefácio da tradução portuguesa de “Problemas de Género”, em 2017, João Manuel Oliveira escreveu que “o género em Portugal, antes de começar a ser pensado nas universidades, já andava nos palcos da dança contemporânea”, e exemplifica com esta obra de Francisco Camacho, a qual veio mostrar que “a masculinidade em ruínas era a ruína do Império” português.

A preocupação do autor em 1991 foi a de encontrar uma linguagem que se afastasse da tradição da dança (©Nacho Correa)

“Para mim foi, seguramente, uma peça fundamental”, recorda o bailarino e coreógrafo lisboeta. “Por se tratar de um solo, aprendi o que é dirigir e ser dirigido num espetáculo, fui mestre e pupilo ao mesmo tempo, o que naquela época fez todo o sentido para mim. Em termos profissionais, abriu-me portas para uma carreira internacional, o que trouxe também algum reconhecimento em Portugal.”

Por juntar dança e teatro, movimento e palavra, “a peça gerou alguma perplexidade”, lembra Francisco Camacho.

“Não é que não houvesse outros criadores a tocar o universo da dança e do teatro. Já conhecíamos Pina Bausch e já tínhamos visto Anne Teresa De Keersmaeker. Mas, em geral, o teatro não era tão visível na dança portuguesa. Aqui tentei que houvesse momentos teatrais muito marcados, até numa certa artificialidade com que dizia o texto. Na altura, preocupava-nos a ideia do autor, a voz própria do criador. Queria uma linguagem de movimento minha, que não se inscrevesse numa tradição.”

“O Rei no Exílio” tem sido descrito como um retrato irónico e cruel de Portugal, uma obra sobre a solidão, o poder e a masculinidade. O bailarino surge na penumbra, num palco quase despido, e o estado de espírito vai da altivez ao desalento absoluto. Em termos de movimento, descreve Francisco Camacho, há “muita fragmentação” e uma “espontaneidade que faz parecer que nem o intérprete controla o que acontece”. As influências foram a passagem de Camacho por Nova Iorque, o estilo de montagem dos filmes de Jean-Luc Godard ou a peça “A Missão – Recordações de Uma Revolução”, de Heiner Müller, encenada pelo Teatro da Cornucópia.

“Há umas valsas quase reais e compostas, mas que se desmancham e perdem a compostura. Há sequências pelo chão, o rastejar, o peso, a dificuldade. É um trabalho sobre um corpo em dificuldade”, resume o bailarino.