Os estilhaços de vidro espalhados pelo chão e a faixa da polícia na casa térrea de um bairro de Odivelas não deixam margem para dúvidas. Foi ali que tudo aconteceu. Um homem de 69 anos, irado com uma família vizinha, pegou na caçadeira que guarda em casa e abriu fogo. O chumbo dispersou e atingiu duas raparigas, com quem há algum tempo andava em conflito. As vítimas estão livres de perigo.

O estrondo que a arma de Carlos Melo causou foi ouvido pelas 19h50 de terça-feira, no bairro dos Pombais, um aglomerado de casas térreas, prédios degradados e escadas íngremes, cravado numa colina junto à Escola Básica dos Pombais. Foi ali que Maria (nome fictício) arrendou uma casa logo após o 25 de abril, em 1974, e conheceu o vizinho Carlos, serralheiro de profissão, e a mulher Adelina.

Maria estava a jantar quando ouviu o som de uma arma a disparar. E, diz ao Observador com receio de ser identificada, construiu logo a tese do que se teria passado: há muito que o vizinho implicava com a família africana que se mudara para uma casa quase em frente e o caso teria agora um dramático ponto final.

A chamada telefónica para o 112 dava conta de “um homem barricado e duas crianças feridas”. Dos bombeiros de Odivelas arrancaram duas ambulâncias e o comandante, Fernando Santos, ainda deixou mais pessoal em alerta por haver um barricado. “Esperámos pela PSP para entrar no bairro, porque havia armas envolvidas, mas afinal as vítimas tinham 17 e 23 anos. Eram adultas. E o homem entregou-se logo à PSP e deu a arma“, descreveu ao Observador o comandante Fernando Santos.

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Carlos chegou a colocar um sinal à frente da horta para proibir o estacionamento

A tese comunicada à polícia dá conta de conflitos entre Carlos, a mulher e a família vizinha. Carlos não gostava de ouvir o barulho das crianças na rua e não o escondia. E as raparigas ter-lhe-ão batido à porta para pedir satisfações. O reformado fartou-se da conversa e decidiu pôr um ponto final com um disparo. Mas o chumbo acabou por atingi-las.

Um vizinho da frente, que ali vive há seis meses, garante que nada viu. Mas quando chegou do trabalho reparou no aparato e nas duas raparigas encostadas ao muro e a sangrar. Conscientes. Tinham sido atingidas na zona do ombro e da omoplata e foram imediatamente levadas para o Hospital de Santa Maria, onde permaneceram esta quarta-feira. “Quando vim para aqui viver o senhor Carlos ainda me ajudou muito. E eu até lhe dava uma ajuda na horta. Mas depois variou e deixou de me falar”, conta.

A horta, ao lado da casa deste vizinho, cujo acesso é feito por um pequeno portão verde que está trancado com um cadeado, também chegou a ser motivo de confusão, segundo contam. “Um dia arranjou um sinal de proibição de estacionamento e colocou à entrada do portão. E não deixava que ninguém ali estacionasse”, recordou Maria, quando começou a desfiar o novelo de episódios conflituosos que atribui ao vizinho. “Até cortou a água ao vizinho de trás, porque ele também tinha uma horta e gastava muita água. E queixou-se à câmara de um outro que tinha uma criação de cães”.

“Ele achava que era o dono da rua”, atira outra moradora, afastada alguns metros da casa de Carlos, mas a comentar o sucedido enquanto o carteiro lhe entrega a correspondência. “Eu chamava-lhe o regedor. Queria saber sempre tudo. Não podia ver alguém a fazer uma obra que ia logo ver o que se passava. E quando o barulho o incomodava ia à janela e exibia a caçadeira”, conta o familiar de uma mulher que também habita no bairro.

Os familiares das vítimas passam, dizem que não querem falar, mas garantem ao Observador que as vítimas estão livres de perigo. Uma fonte da PSP revela, no entanto, que o cenário relatado às autoridades é um pouco diferente. “Parece que essa família causa muitos distúrbios, com música alto até de madrugada e com muitos movimentos suspeitos”. Dias antes de Carlos ter premido o gatilho para pôr fim à discussão, teria sido vítima de agressão por parte daquela família. Mas na PSP não há qualquer queixa formal. É a palavra de uns contra os outros.

No local ainda há estilhaços de vidro da janela que se partiu com o disparo

A porta da casa de Carlos e Adelina está trancada. A janela destruída pelo chumbo da caçadeira, que Carlos registou na PSP para poder caçar. Por cima da porta, os chifres que diz servirem para “afastar o mau olhado”. Os vizinhos viram Adelina a acompanhar o marido, levado pela PSP, logo após o crime. E não a viram mais. Também o cão do casal não parece estar no interior. Maria arrisca que Adelina poderá estar com a filha, que vive na Póvoa de Santo Adrião.

Carlos não se livra da fama. Os vizinhos dizem que quando se reformou ainda trabalhava em part-time e “não chateava tanto”, mas quando se viu com tempo livre tudo se complicou. Será presente a tribunal esta quinta-feira para aplicação de medida de coação. No bairro espera-se com apreensão o resultado.

Em 2017 as autoridades registaram um total de 580 ofensas à integridade física graves, uma média de quase dois casos por dia, e 82 casos de homicídio. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2017, “o crime continua a acontecer de forma expressiva em contexto relacional (vizinho, conhecido, familiar…)”. Mais. Em 33% dos suspeitos identificados ou detidos pelas polícias eram vizinhos das vítimas.