A polémica em torno da Lei do Trabalho Portuário – que opôs os estivadores e os sucessivos governos (incluindo o atual), desde que foi alterada no período da Troika, em 2013 – pode estar de volta. Tudo porque a Autoridade da Concorrência quer e recomenda aos legisladores, num relatório que será divulgado esta sexta-feira, que procedam a alterações ao quadro jurídico que rege o trabalho nos portos. Mas não se fica por aqui: também quer alterações no transporte rodoviário, incluindo os táxis.

A Autoridade da Concorrência uniu forças à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e passou ano e meio — de outubro de 2016 a março de 2018 — a avaliar a concorrência do setor dos transportes portugueses, com o objetivo de identificar legislação e regulamentação que esteja a restringir o funcionamento dos mercados.

No total, a OCDE e o regulador encontraram na legislação portuguesa “367 disposições [leis, decretos-lei e regulamentação, ou ausência dela…] identificadas como barreiras à concorrência” no setor dos transportes. E por isso recomendam, no relatório ao qual o Observador teve acesso, um conjunto de medidas que, caso seja aplicado integralmente, poderá representar benefícios de 250 milhões de euros por ano à economia portuguesa. Mas algumas das recomendações, as que dizem respeito à Lei do Trabalho Portuário e ao regime de operação portuária, podem reavivar velhos conflitos.

Guerra com os estivadores

Estivadores aprovam acordo que põe fim à greve no Porto de Lisboa e regressam ao trabalho na segunda-feira

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Em maio de 2016, após forte contestação dos estivadores de Lisboa, 40 dias de greve e protestos nas ruas, a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, apadrinhou um acordo entre os trabalhadores da estiva e os operadores do porto da capital. O acordo travou os protestos.

Porquê? O ponto mais importante prendia-se com a Porlis, mais concretamente com a possibilidade (ou não) de a Porlis contratar trabalhadores para a atividade de estiva. O Sindicato dos Estivadores, liderado por António Mariano, traçou a linha vermelha neste ponto: a Empresa de Trabalho Portuário (ETP) de Lisboa, onde o controlo do sindicato era maior, teria de ter a exclusividade na contratação de estivadores para o porto da capital.

O acordo apadrinhado pela ministra em maio de 2016, entre outros pontos, focava este: a Porlis – uma empresa de trabalho temporário para os portos criada no perímetro do grupo Mota-Engil – ficaria impedida de contratar novos trabalhadores.

O que diz o acordo entre os estivadores e os operadores do Porto de Lisboa?

A Porlis deixou de contratar e 23 dos seus trabalhadores tiveram de ser integrados na ETP. Um mês depois, em junho de 2016, os operadores do porto de Lisboa haveriam de ir mais longe: comprometeram-se, no âmbito das negociações do Contrato Coletivo de Trabalho dos estivadores de Lisboa, a desativar a própria Porlis.

Objetivo conseguido: a contestação dos estivadores amainou. Só que os estivadores não desistiram de tentar reverter as alterações que a Lei do Trabalho Portuário tinha sofrido em 2013, pela mão do governo PSD-CDS e em cumprimento do memorando de entendimento com a Troika.

Esta Lei nº3/2013 representava a primeira alteração, em quase vinte anos, à Lei do Trabalho Portuário de 1993 e tinha sido aprovada em 2012 com os votos favoráveis do PS, numa bancada onde estava Ana Paula Vitorino. Entre outros aspetos, alterava taxas, o regime de pagamento de horas extraordinárias e as condições de acesso à profissão de estivador, ou seja, que funcionários poderiam trabalhar nos portos.

Estivadores do Porto de Lisboa assinam novo Contrato Coletivo de Trabalho

Questionada no parlamento, em junho de 2016, a ministra disse que a lei não iria ser mudada por pressão dos estivadores.

“Não vamos alterar a lei do trabalho portuário. O Governo não vai alterar a lei do trabalho portuário e não se trata de pressões, ou não. Não vai alterar a lei aprovada com os votos favoráveis do PS […] na medida em que se trata de uma adaptação à legislação comunitária”, afirmou na altura.

Agora pode mesmo vir a ter de o fazer, isto se cumprir o que diz a Autoridade da Concorrência.

Recomenda-se que o legislador redesenhe o regime de acesso ao mercado da prestação de serviços de trabalho portuário, liberalizando o acesso ao mercado também por empresas de trabalho temporário”, indica a entidade no relatório.

Para o regulador, “o legislador deverá eliminar os direitos exclusivos das empresas de prestação de trabalho portuário na prestação destes serviços”, recomendando a eliminação de “quaisquer requisitos legais que exijam que as empresas de trabalho portuário tenham como objeto social exclusivo o de fornecer mão-de-obra aos operadores de movimentação de cargas”.

A ideia é a de especificar na futura lei que “a prestação de trabalho portuário possa ser realizada por empresas de trabalho temporário, desde que estejam sujeitas às mesmas regras de licenciamento”.

Por outro lado, a Autoridade da Concorrência considera que os legisladores devem considerar a possibilidade de “revogar o regime de licenciamento específico das empresas de trabalho portuário”, aplicando, em vez disso, “o regime geral de licenciamento das empresas de trabalho temporário”.

As recomendações visam liberalizar o acesso a um dos mercados mais fechados da economia portuguesa – o do trabalho portuário – bem como “aumentar a concorrência no fornecimento de mão-de-obra portuária às empresas prestadoras de serviços de operações de movimentação de carga”.

Outro ponto que pode dar que falar: a recomendação para que sejam alterados os regimes jurídicos que regulam a prestação de serviços de movimentação de carga nos portos, ou seja, o trabalho de estiva.

A AdC pretende que se possa recorrer ao licenciamento deste serviço mesmo sem uma Resolução do Conselho de Ministros a reconhecer a sua manutenção como sendo de “interesse estratégico para a economia nacional”.

Um dos artigos do regime de operações portuárias que a AdC recomenda alterar diz isto: “A autoridade portuária apenas pode exercer diretamente a atividade de operação portuária em caso de insuficiente prestação de serviço por empresa de estiva ou para assegurar a livre concorrência”. Resta saber em que medida os sindicatos dos estivadores podem considerar que o seu controlo sobre o trabalho da estiva está em risco.

Ou seja, de caminho, estas recomendações podem fazer muito mais. Caso os legisladores queiram mesmo seguir as recomendações, discutindo ou mesmo mexendo nas diferentes leis do setor, a contestação dos estivadores nas ruas pode aumentar ou mesmo fazer voltar as paralisações aos portos nacionais.

Transporte Rodoviário: Abrir o mercado nas carreiras de longa distância

Mas a AdC encontrou outras restrições à concorrência no setor dos transportes nacionais, por exemplo no transporte rodoviário.

A AdC quer que todos os operadores de transporte de passageiros “possam ter acesso ao mercado de carreiras de longa distância [serviço em distâncias superiores a 50 quilómetros, conhecido por ‘Serviço Expresso’]”.

Atualmente, quando alguma empresa quer fornecer um “serviço expresso” rodoviário tem de pedir uma autorização ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Mas este apenas admite os pedidos de empresas que já fazem transporte rodoviário público de passageiros, “ou que já estejam presentes em pelo menos um dos pontos terminais do novo serviço, no mesmo itinerário ou em itinerário paralelo”.

O regulador quer que os legisladores acabem com esta situação.

A aplicação destas recomendações, ainda de acordo com as estimativas da entidade, “permitirá a entrada de mais operadores no mercado, incluindo operadores internacionais, a concorrência pelo preço, permitindo aos operadores adaptarem a sua oferta, e uma diferenciação de produtos (em termos de oferta de mais carreiras e de paragens intermédias)”.

Táxis sem restrições

A Concorrência quer acabar com as quotas de táxis em cada município – definidas pelas câmaras – e com as restrições geográficas do serviço, para permitir a recolha de passageiros de qualquer município.

Por outro lado, recomenda que a atual “convenção de preços fixos seja substituída por preços máximos, para serviços pré-reservados (online, por telefone, por aplicativo móvel, etc.)”. A ideia, escreve a AdC, tem em vista “uma possível liberalização no médio/longo prazo”, bem como a possibilidade de virem a ser oferecidos “descontos sobre a tarifa, para serviços contratados na rua ou em praça de táxis”.

“Estas recomendações, se implementadas, contribuirão para a entrada de novos operadores no mercado e do número de carros de táxi disponíveis para os clientes.