Título: “António Variações – Entre Braga e Nova Iorque”
Autor: Manuela Gonzaga
Editora: Bertrand Editora
Páginas: 320
Preço: 17,70€

A biografia de António Variações que Manuela Gonzaga escreveu em 2006 e que agora reviu e aumentou sob a chancela da Bertrand começa da melhor forma possível. Não há por certo melhor maneira de começar a compreender o cantor do que a partir de uma descrição da sua casa, onde as paredes eram “alucinantemente verdes” (p. 9) com pratos de louça das Caldas pendurados. Para Variações, isto era o Minho. Para nós, isto é Variações. No entanto, por muito promissor que fosse este início e por pertinente que seja a ideia de escrever uma biografia do cantor português mais original do último século, Manuela Gonzaga irá de seguida caminhar em círculos, repetindo-se constantemente sem conseguir nunca chegar a bom porto.

Ao procurar oferecer o palco aos inúmeros amigos, colegas e familiares de Variações que entrevistou para o seu livro, Gonzaga deixa a biografia cavalgar com rédea solta, perdendo-se a possibilidade de utilizar as informações avulsas que reuniu para construir uma leitura de Variações robusta e que permita de alguma forma perceber verdadeiramente o artista. A ausência de um critério para o que entra e o que fica de fora do livro leva a que o leitor seja informado de pequenas (e acima de tudo irrelevantes) controvérsias entre um dos irmãos de Variações e a melhor amiga do cantor, sendo também explicado, sem qualquer pertinência, que a cunhada do cantor tem ainda hoje em sua casa um bule e duas chavenazinhas, que vigia atentamente e pede sempre aos filhos que tenham o cuidado de não as partir. No entanto, sobre o processo de descoberta da orientação sexual de Variações (que, com certeza, para alguém vindo das redondezas de Braga nos anos 50 terá tido um impacto significativo na sua vida) não é dito rigorosamente nada, tal como quase nada se diz sobre o seu namorado holandês, que Gonzaga sugere ter partilhado com Variações os últimos anos da vida deste, bem como muitas outros aspectos da vida de Variações relevantes para a construção da sua personagem.

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Manuela Gonzaga: “Era impossível não amar António Variações”

Mais do que uma biografia de Variações, António Variações – Entre Braga e Nova Iorque parece ser uma transcrição do que foi comunicado a Manuela Gonzaga, o que levanta desde logo três problemas principais. Ao transformar este livro num compêndio de testemunhos, Gonzaga torna a biografia extraordinariamente repetitiva, visto que por quatro vezes nos é dito, de uma maneira ou de outra, que Carolino, o irmão mais novo de António, ficou na terra natal de ambos tendo-se tornado marceneiro, sete vezes é dito que Variações se considerava um barbeiro e não um cabeleireiro, duas vezes se conta que Variações terá dito que ficaria honrado se Marco Paulo cantasse uma música sua, duas vezes se diz que o seu irmão Delfim se esqueceu dos pastéis de bacalhau em Fiscal ao viajar para Lisboa e em página e meia é dito por três vezes que o seu amigo e antigo amante, Fernando Ataíde, morreu passado um ano e meio da morte de Variações.

Ao limitar-se a transcrever o que lhe é dito, Manuela Gonzaga opta por não adaptar as entrevistas que fez ao tom que se espera de uma biografia, mantendo-as no registo oral que, naturalmente, estas tinham. Assim, é muitíssimo frequente encontrar expressões que não têm lugar numa narrativa deste género, como: “e porque assim e porque assado” (p. 231), “e eu achava que, ao mesmo tempo que ele era muito inteligente, e que sabia o que queria ser, também pensava assim poça, estou a fazer coisas que não devia fazer” (p. 232), “Durante o almoço, o Marco quis mostrar que estava um bocadinho ciumento e sentido, mas na boa, porque é uma excelente pessoa” (p. 246) ou “ Poça, tá bem que eu tinha musica para rasgar, mas… ” (p. 252). Estas opções, associadas a uma quantidade inaceitável de gralhas e ao uso constante de adjectivos a anteceder o nome das figuras da nossa praça a que Manuela Gonzaga se refere (“o ‘mítico’ cabeleireiro Alexandre” (p.105), “o grande Ary dos Santos” (p.121) , “a inesquecível Guida Scarllaty”, (p.123), “o genial José Maria Rosado/ Lídia Barloff” (p.123), “a famosíssima Guida Scarllaty” (p.141), “o espantoso poeta Pedro Homem de Mello” (p.176), “a inesquecível Lídia Barloff” (p.180), “a lindíssima Lena” (p.246)) torna o livro em muitos momentos ilegível.

Por fim, ao decidir dar primazia à transcrição de histórias avulsas, Gonzaga perde a oportunidade de procurar enquadrar as histórias que reuniu, utilizando-as para tentar compreender Variações, que assim se mantém sempre ausente. Muitas vezes, e não apenas na biografia de Gonzaga, é sugerido que Variações seria um homem à frente do seu tempo. O equívoco desta afirmação pode ser compreendido a partir das histórias que esta biografia partilha. Sugerir que alguém viveu à frente do seu tempo parece ter duas implicações: ou a personagem anacrónica não pôde ser compreendida pelos seus contemporâneos, por ser a um tempo futuro que pertenceria mais adequadamente, ou terá sido compreendido e aclamado precisamente por trazer e anunciar um novo tempo que, em parte graças à sua colaboração, chegará em breve. Ora nenhuma destas hipóteses se parece ter verificado. Por um lado, como David Ferreira explica, Variações nunca foi um artista incompreendido. Por outro lado, não anunciou o tempo vindouro.

Ainda hoje, Variações causaria estranheza ao aparecer na RTP com um pijama de flanela e um urso de peluche, ou a atirar smarties para o incauto público dos programas da manhã da televisão pública. Aliás, Variações tanto parece estar à frente do seu tempo como atrás dele, como se sugere quando é dito que se vestia com “antigas camisas minhotas, sem colarinho, que usou muito tempo, mas… que já ninguém usava” (p.252). Variações cantava sobre “uma venerinha de Santa Teresinha que está benzidinha para dos males me defender” e, segundo Gonzaga, era conhecido no meio homossexual por Maria Minhota. Descrever-se António Ribeiro como um homem à frente do seu tempo é, portanto, demasiado redutor. Mas é também demasiado optimista, por assumir que somos afinal nós, homens e mulheres da segunda década do século XXI, os verdadeiros contemporâneos de Variações. Não somos.

Variações saía para os bares da noite lisboeta dos anos 70, mas não bebia, não se drogava, dançava sozinho e saía à meia-noite. Gravava homenagens a Amália quando o público do fado o vaiava e a esquerda repudiava a diva, por ser, tal como o próprio fado, considerada colaboradora do salazarismo. Rejeitava pertencer à comunidade homossexual, rejeitava criar falsas empatias com as suas clientes, rejeitava ser de Braga, rejeitava ser de Nova Iorque. Rejeitava basicamente tudo o que lhe permitisse ser absorvido por uma comunidade que simplificasse a sua existência, apagando-a. Gonzaga fala a certa altura dos primeiros travestis que durante o dia tinham a pacata existência de funcionários públicos. Esta ideia de uma vida tribal em que somos uma coisa de dia e outra de noite para melhor nos integrarmos (ainda que em casos limites, como os destes primeiros travestis, se tratasse de certo modo de uma questão da mais elementar sobrevivência) é olhada com escárnio e desprezo por Variações, que nunca desistiu de procurar o seu mundo, o seu lugar. Que, mais do que um homem à frente do seu tempo, foi alguém a olhar p’ra trás e de pensamento em frente.

Em frente não havia mais nada, não.