Aos 114 minutos de jogo, já na segunda parte do prolongamento de uma partida que ficou a dever muito à qualidade, Mário Fernandes deu uso ao metro e oitenta e sete que aparece no bilhete de identidade e saltou mais alto do que todos os outros. Cabeceou, marcou golo e colocou a Rússia novamente na luta pelo último lugar nas meias-finais deste Mundial. Cerca de 20 minutos depois, foi chamado para marcar a terceira grande penalidade dos russos. Exausto, disparou rasteiro e ao lado da baliza de Subasic. 11 metros, os mesmos 11 metros que separam a marca de penálti da linha de golo, separaram o céu e o inferno de Mário Fernandes.

Mário, nome ocidental que rapidamente revela que nasceu bem longe de Moscovo, foi naturalizado russo em julho de 2016. Vladimir Putin, assumido adepto do CSKA onde joga Mário Fernandes, emitiu pessoalmente um decreto presidencial que deu cidadania russa ao até aí brasileiro, tornando-o elegível para a convocatória da seleção. E talvez o lateral direito estivesse destinado a representar um qualquer outro país que não aquele onde nasceu. O jogador de 27 anos, que nasceu em São Caetano do Sul, no Brasil, deixou o estilo de vida que levava aos 21 roubar-lhe a oportunidade de jogar pela canarinha.

Titular indiscutível do Grémio em 2011, foi convocado por Mano Menezes para o segundo jogo do Superclássico das Américas, uma espécie de troféu discutido em duas mãos entre o Brasil e a Argentina. O voo, que tinha como destino uma escala em São Paulo para depois aterrara em Belém, estava marcado para as 5h30. Mário Fernandes não apareceu. O empresário e a Confederação Brasileira de Futebol agendaram outro voo, depois um terceiro, e o lateral continuou sem aparecer. Nessa mesma tarde, a federação brasileira emitiu um comunicado: Mário Fernandes não estaria presente “em decorrência de problemas particulares responsáveis por uma alta carga de stress no atleta. Dessa forma, o jogador não se encontra em condições psicológicas de se dedicar inteiramente à seleção nacional”.

Mário Fernandes ao serviço da seleção brasileira, em 2014.

Os “problemas particulares responsáveis por uma alta carga de stress” eram código para noite, álcool e ressaca. Dois anos antes, em 2009, Mário Fernandes tinha desaparecido misteriosamente depois de levantar 1.800 reais da conta bancária. Esteve cinco dias incontactável, foi encontrado a mais de mil quilómetros de casa, esfomeado e subnutrido. Mais tarde, foi-lhe diagnosticada uma depressão. Contratado pelo CSKA em 2012, vive em Moscovo uma rotina completamente diferente daquela que levava no Brasil. Deixou de beber, como o próprio admitiu já durante este Mundial, não sai à noite, é o primeiro a chegar ao centro de estágio e o último a sair. Depois do jogo com a Arábia Saudita, ainda na fase de grupos, foi questionado pela imprensa brasileira sobre se preferia a noite de Porto Alegre ou a de Moscovo, numa clara provocação relacionada com o passado mais conturbado. Sorriu e atirou: “Nem sequer conheço a noite de Moscovo”.

A segunda oportunidade na seleção brasileira surgiu com Dunga, em 2014. Dois anos depois de ter preferido o CSKA Moscovo ao Real Madrid, foi chamado à seleção brasileira para um particular com o Japão: foi, jogou e esta continua a ser a única internacionalização de Mário Fernandes pelo Brasil. Não voltou a ser convocado, naturalizou-se russo e beneficiou das regras da FIFA – que ignoram jogos particulares nas contagens oficiais – para se estrear pela Rússia em outubro de 2017. Foi um dos melhores jogadores da seleção anfitriã neste Mundial, foi titularíssimo na lateral direita da defesa e marcou o golo que adiou a eliminação russa para as grandes penalidades. Com as pernas fracas e já sem discernimento, nem sequer acertou na baliza quando foi chamado a marcar o penálti. Mário Fernandes é a distância entre o céu e o inferno da Rússia neste Mundial.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR