Inglaterra e Croácia discutem esta quarta-feira a última vaga na final do Mundial e todas as armas para conhecer melhor o rival – e poder ganhar-lhe vantagem – são bem-vindas. Sem tomarmos partido sobre quem tem mais hipóteses neste duelo, há um ponto em que a seleção dos Balcãs pode estar uns furos à frente: é que enquanto os 23 convocados britânicos atuam, todos, no seu campeonato, a Croácia tem um ‘infiltrado’ a jogar na liga do rival. Falamos de Dejan Lovren, que defende as cores do Liverpool desde 2014/15 (antes disso tinha estado uma época no Southampton).

Ora o central conhece melhor do que ninguém os seus adversários da meia final, um em particular: Harry Kane, o avançado do Tottenham que é, ‘apenas’, o melhor marcador deste Mundial, com seis golos. E tem com ele duelos particulares para esquecer. Falamos de um em particular: a goleada sofrida pelo Liverpool, na época passada, diante dos spurs (4-1). Nesse jogo, Kane marcou por três vezes, uma delas já sem Lovren em campo. É que o central teve uma tarde tão para esquecer, que foi substituído por Jürgen Klopp. Esse jogo originou, até, mais uma ‘fífia’ do jogador – mas desta vez nas redes sociais. No final do encontro, partilhou uma fotografia em que surgia frente a um espelho com a frase “Hoje foi um dia mau”. Os adeptos, claro, também estavam num dia mau – mas devido à pesada derrota. Vai daí, a publicação tornou-se num chorrilho de insultos ao defesa central. O croata não foi de meias medidas: deixou de seguir o próprio clube no Instagram e ainda trocou a imagem de perfil, onde surgia com o equipamento do Liverpool.

Uma crise política em pleno Mundial e um escândalo de corrupção

Lovren está, aos 29 anos, no seu segundo Mundial – também marcou presença no Brasil, em 2014, onde a Croácia ficou pela frase de grupos – e tem sido titularíssimo no eixo da defesa menos batida deste campeonato (apenas não atuou no último jogo da fase de grupos, frente à Islândia, uma partida em que vários atletas foram poupados).

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Mas não é pelas boas razões que o defesa está nas bocas do Mundial. Logo após a vitória sobre a Argentina (3-0), na fase de grupos, o central partilhou um vídeo nas redes sociais em que aparecia ao lado de Vrsaljko a cantar a música “Bojna Cavoglave”, da banda Thompson. Nenhum mal teria se o tema não tivesse sido adotado pela extrema direita croata. Um dos versos, que não é cantado no vídeo partilhado pelo atleta, inclui a expressão “za dom spremni” (que em português significa “pela pátria, preparados”). A frase foi usada como slogan de campanha e saudação usada pelos Ustase, movimento nacionalista de extrema direita que assumiu o poder do Estado Independente da Croácia durante a Segunda Guerra Mundial – e que espalhou o terror pelo país, matando sérvios, judeus e ciganos.

Abrimos um pequeno parêntesis para lhe dizer que a Croácia tem um claro problema com comemorações neste Mundial. Na sequência da vitória sobre a Rússia, nos quartos de final, Domagoj Vida dedicou o triunfo à Ucrânia – país com o qual o anfitrião da prova está de costas voltadas – publicando um vídeo nas redes sociais onde grita “Glória para a Ucrânia! Esta vitória é para o Dínamo e para a Ucrânia” (e que viria a motivar o despedimento de um elemento da comitiva croata)

Mas voltemos a Lovren – ele que está no centro de outra polémica mas, desta vez, de porte maior. Que é como quem diz, um escândalo de corrupção. Upa, upa. Tudo começou com Zdravko Mamic, antigo administrador do Dínamo Zagreb e uma espécie de manda chuva do futebol croata: caçava talentos, mas também os forçava a assinar contratos, no mínimo, duvidosos. Diz a justiça que Mamic, juntamente com o seu irmão Zoran, obteve lucros ilícitos com a transferência de vários jogadores do Zagreb – tendo mesmo sido condenado a seis e meio de prisão, a apenas uma semana do início do Mundial.

Ora Lovren, assim como o companheiro de seleção Luka Modric, terá estado envolvido no esquema quando se mudou do Dínamo para o Lyon, em 2009 (o caso de Modric envolve a transferência para o Tottenham, um ano antes). Os dois jogadores teriam recebido metade das comissões, encaminhando depois uma parte do dinheiro para Mamic, que assim recebia um elevado montante sem o declarar. Os dois jogadores estão, ainda, a contas com a justiça.

O passado como refugiado político

Já vimos que Lovren foi protagonista de uma espécie de incidente político no Mundial. Se desta vez é culpado, também já foi vítima na infância. O jogador, muito antes ainda de o ser, tinha apenas três anos quando a Guerra da Bósnia o fez abandonar Kraljeva Sutjeska, a pequena cidade que fica hoje na Bósnia, mas que, naquele tempo, era parte da antiga Jugoslávia. A família do central teve de fazer as malas quando rebentou a Guerra da Bósnia, conflito que vitimou mais de 100 mil pessoas entre 1992 e 1995.

Lembro-me que a minha mãe pegou em mim e fomos para a cave. Não sei quanto tempo ficamos lá sentados, eu, a minha mãe, o meu tio e a mulher dele. Depois, apanhámos o carro e viajámos por 17 horas até à Alemanha”, recorda Lovren no documentário “A minha vida como refugiado”.

Na Alemanha, Lovren vivia numa pequena casa de madeira do avô  onde chegaram a morar 11 pessoas. Foi no país germânico que o defesa se encantou pelo futebol, quando jogava com pai no quintal e sonhava com o Bayern Munique (chegou a tirar fotografias com os ídolos da época, como Matthäus ou Lizarazu). Mas, mais uma vez, a felicidade durou pouco. O governo alemão ordenou que as famílias de refugiados abandonassem o país após a guerra. “Um dia chegaram a disseram: ‘Têm dois meses para arrumar as malas e partir’. Para mim foi difícil, todos os meus amigos estavam na Alemanha, a minha vida tinha começado lá. Tinha tudo, estava feliz, jogava num pequeno clube em que o meu pai era treinador. Era simplesmente lindo”, conta Lovren.

Matthäus, melhor jogador do Mundo em 1991, alinhava no Bayern quando era um dos ídolos de infância de Lovren (RossKinnaird /Allsport)

Dez anos no cartão de cidadão, mais um carimbo no passaporte. A família do jogador mudava-se agora para a Croácia. “Quando cheguei, foi difícil. Não entendia e não sabia escrever o idioma. Todos me perguntavam: ‘Porque é que o teu sotaque é diferente do nosso?’. E até hoje tenho aquele sotaque alemão. Tive problemas na escola por causa disso. Os professores explicavam aos alunos que eu tinha vindo de outro país, que precisavam de ser mais compreensivos. Para ser sincero, eles só não se riam de mim quando eu jogava futebol“. A partir daí, só mesmo o futebol o fez voltar a acrescentar carimbos no passaporte. O último é o da Rússia, país que alberga, agora, todos os sonhos do mundo.