Não é bem uma escultura nem apenas uma instalação e ainda não há título ou forma definida. A artista chama-lhe “show”. Inclui lã, tecidos, peles de animais, imagens de santos. Irá revelar-se ao público a 1 de setembro. “Confio na intuição, presto muito atenção aos materiais, cada criação é uma experiência”, conta Ann Hamilton. “As questões surgem à medida que o trabalho avança e através das pessoas que vou conhecendo e com quem falo. Estou a seguir uma poética que encontrei nos portugueses.”

Ann Hamilton representou os EUA nas bienais de São Paulo, em 1991, e de Veneza, em 1999, e está em Guimarães desde o início do mês, em residência artística. Há dias, explicou ao Observador como descobriu Portugal e que métodos de trabalho prefere. Numa sala do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), mesmo no centro da cidade, deixou-nos em suspenso sobre a obra, porque o processo vai a meio, porém concretizou o que espera proporcionar às pessoas:

“O visitante é convidado a colocar a sua própria experiência ao serviço do objeto que irá ver e não deve esperar que o objeto lhe diga o que pensar. O projeto tem uma dimensão tátil, é muito concreto, tem materialidade, mas aponta caminhos muito abstratos.”

Quinta-feira, início da tarde, Ann Hamilton vagueia pelo atelier temporário que lhe montaram no CIAJG e daí a umas horas está a dar uma conferência aberta ao público. As mãos são muito expressivas, os olhos têm curiosidade e a voz é paciente. Mostra-nos peles curtidas e restos de lã que se acumulam nas mesas e no chão, comenta que o cheiro a bedum é parte integrante da experiência sensorial que o projeto implica. Seis alunos de cursos de artes dos EUA, assistentes da artista, distribuem-se por tarefas manuais repetitivas. Aspiram, limpam, costuram, muitas vezes estão em silêncio.

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A visita de Ann acontece no âmbito da Contextile – Bienal de Arte Têxtil Contemporânea, cuja quarta edição começa a 1 de setembro em Guimarães. Quem a convidou foi a também artista americana Cindy Steiler, que há alguns anos participa na bienal.

“Recebi um e-mail da Cindy no ano passado com um convite para conhecer Guimarães e pensar num projeto. Consegui vir pela primeira vez durante uma semana em dezembro e foi quando conheci os responsáveis pela bienal e o diretor do CIAJG”, recorda. “Encontrei materiais muito ricos e uma história social muito interessante. Se há coisa que me agrada é trabalhar nos próprios locais em colaboração com instituições e pessoas.”

Curar um trauma em Guimarães

Numa primeira abordagem, ainda em 2017, pensou apresentar-se em antigas fábricas têxteis do Vale do Ave, até perceber que seria difícil levar público a locais que em muitos casos já estão em ruínas. Depois interessou-se por uma fábrica de curtumes que fechou há poucos anos, ali mesmo em Guimarães, mas o edifício foi posto à venda e não poderia usá-lo. A terceira opção é a que se mantém e implica que a obra se estenderá a vários sítios: o próprio CIAJG e a praça envolvente, o novo mercado municipal e a Sociedade Martins Sarmento. A intervenção em grande escala é imagem de marca da artista.

Segundo o diretor do CIAJG, Nuno Faria, a intervenção da Ann Hamilton “tentará celebrar, ou curar, o facto de este ser o local de um trauma, de uma perda afetiva para a comunidade”. Isto porque o centro foi inaugurado em 2012, ano da cidade-berço como Capital Europeia da Cultura, e ocupa o espaço que até então pertencia ao mercado municipal, entretanto reconstruído ali perto, no lugar das Lameiras. A alteração ainda hoje desperta paixões entre os vimaranenses, como um trauma urbano que tem demorado a passar.

Serão símbolo dessa tentativa de cura as peles curtidas que os assistentes da artista cosem por estes dias com afinco – peles de tom azul costuradas umas às outras “num processo de suturação que vai dar origem a uma vasta membrana”, descreve a criadora.

As peles foram retiradas de uma antiga fábrica de curtumes, a lã é de um produtor de Mogadouro

Mas há mais neste “show” ainda imaginário. Casacos aos quais acrescenta lã de ovelha de um produtor que descobriu em Mogadouro e que foi visitar pessoalmente (serão entre 40 a 60 casacos na versão final). E há outras ideias ainda a nascer: imagens de santos em madeira, que a própria tem digitalizado com um “scanner” de luz no Museu de Alberto Sampaio. As imagens serão gravadas em objetos esféricos para oferecer aos visitantes.

“Ando à procura de processos de transformação, uma certa poesia entre o animado e o inanimado, o animal humano e o animal não-humano, o que vai precisamente ao encontro do tema da Contextile deste ano, que é o orgânico e o inorgânico”, explica Ann Hamilton. “O ponto de partida são os materiais da produção têxtil, mas a forma final será outra coisa. Interessa-me pensar como é que podemos pegar em fragmentos de material e juntá-los a para formar um todo novo.”

“Se não me envolver, não entendo”

Professora no departamento de Arte da Universidade Estadual do Ohio, e reconhecida por trabalhos com tecidos, texturas e superfícies, Ann Hamilton tanto pode ser descrita como performer, escultura ou artista visual, até porque estudou design têxtil e escultura. No entanto, categorias ou certezas estão-lhe muito ausentes no discurso e na prática e quando lhe perguntamos se se considera uma criadora pós-minimalista, como dizem os críticos de arte, ela responde com uma tese resumida:

“A forma, a ressonância ou o significado dos meus trabalhos deriva da sua existência concreta, ou seja, não representam alguma coisa, representam-se a eles próprios e à sua materialidade, o que pode ter muitas leituras. Nesse sentido, o meu vocabulário inclui formas abstratas e isso relaciona-se com o pensamento minimalista. Mas não gosto de pensar nesses termos.”

Não se vê como “artista de atelier”, porque “criar entre quatro paredes e despachar o trabalho para quem o encomendou” nunca lhe passaria pela cabeça. “Os meus projetos nascem de processos de pesquisa”, afirma. Também não se limita a dar instruções aos que executam, porque tem necessidade de sujar as mãos. “Não entendo o que estou a fazer se não me envolver. Não faço tudo, mas tenho de participar nas tarefas e estar a par”, comenta.

Portugueses “poéticos, líricos”

Regra geral, Ann Hamilton precisa de vários anos para fazer nascer uma obra. O tempo é matéria-prima. Neste caso, teve apenas meio ano e isso para ela é contingência e não obstáculo. Nesta segunda visita a Guimarães fica apenas por um mês, ou seja, regressa aos EUA no início de agosto, por causa de obrigações como professora. E a montagem será feita segundo instruções que pretende deixar.

O tempo contado torna-a muito precisa nas instruções aos assistentes, mas emprega o mesmo tom com que responde às perguntas: calma, sorridente e monocórdica, como que a pairar sobre as dificuldades. A equipa entra todos os dias pelas 10 da manhã, trabalha até às sete ou oito da noite, mas não está a correr, porque isso impediria a artista de aderir ao ‘aqui e agora’ que a inspira.

Ann Hamilton não diz, mas está impaciente com a gestão de meios e por vezes deixa-se absorver pelo aspirador que nunca mais chega, pela falta de luvas para os assistentes, pelo empregado que demora a apagar as luzes. É como se estivesse a descobrir aos poucos que os portugueses têm um ritmo particular de trabalho, talvez menos imediato do que aquele a que estará habituada. Não rivaliza. De Portugal só conhecia até agora Lisboa, que visitou “há muitos, muitos anos”. E acha-se próxima. “Poéticos, líricos”, classifica. “Começo a achar que os portugueses têm uma forma de estar no mundo que consigo reconhecer e pela qual tenho empatia. Não sei se tenho essa poética, mas talvez não a reconhecesse se não a tivesse em mim.”