Se lhe dissermos que a personagem central da história que se segue é um húngaro que conquistou a medalha de ouro em tiro nos Jogos Olímpicos, provavelmente não vai achar nada de especial. Afinal, não é feito único: já houve sete na história do país nesta modalidade — 17, se englobarmos também as distinções de prata e de bronze. Se acrescentarmos que este atleta foi campeão olímpico duas vezes seguidas — a primeira com 38 anos e a seguinte com 42 — tornando-se o primeiro na história a conseguir fazê-lo em tiro rápido de 25 metros, o caso ganha mais interesse. Mas se lhe dissermos ainda que tudo isto foi conquistado depois de esse mesmo atleta ter perdido o braço com que atirava, então aí a conversa já muda de tom.

Károly Takács, assim se chama o protagonista desta história. Nasceu em Budapeste, a 21 de janeiro de 1910, e tudo quanto se sabe sobre os seus primeiros anos de vida é que se alistou no exército húngaro ainda jovem e que chegou a sargento. Sabe-se também que desde cedo se destacou como atirador, mas que não era particularmente respeitado entre os seus pares: conta-se até que, depois de ganhar o título militar, o general encarregue de lhe entregar o prémio se recusou a apertar-lhe a mão. Tudo porque Károly não pertencia às altas patentes do exército.

Mas aos olhos do país não era bem assim. Em 1938, depois de ganhar o campeonato mundial em tiro com pistola rápida, Károly tornou-se a principal esperança húngara para os Jogos Olímpicos que aconteceriam em Tóquio, dois anos depois. Aconteceriam, mas não aconteceram. É que entretanto rebentou a Segunda Guerra Mundial e os Jogos — tal como os seguintes, em 1944 — foram cancelados.

O dia que parecia ter deitado tudo a perder

Mas houve um dia que mudou a vida de Károly Takács — e quase lhe matou os sonhos. Em maio de 1938, numa ação militar que parecia corriqueira, uma granada defeituosa rebentou-lhe na mão direita e fê-la desaparecer. O mundo de Károly acabava de desabar. Não podia ser de outra forma. O atleta mergulhou na depressão e, durante um mês, viveu de rosto fechado num quarto de hospital, pensando que todos os seus objetivos — e o seu dom — tinham desaparecido juntamente com o braço com que atirava.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas tudo mudou num dia — um dia talvez tão decisivo quanto aquele que o vitimou. À saída do hospital, esperava-o o treinador Laszlo Torok. Que lhe disse algo que, até então, parecia quase anedótico a Károly Takács. “Podes aprender a atirar com a mão esquerda…”. A resposta saiu pronta. “Sou destro, não conseguiria”. O técnico não desistiu. “Mas já não tens a mão direita. Essa é a realidade. Prepara-te para o campeonato nacional”. Naquele momento, o atleta deve ter pensado que o treinador tinha sido tomado por um estado de loucura súbito. “Impossível! Falta menos de um ano”.

Mas a ideia ficou lá. Foi germinando na cabeça de Károly e acabou mesmo por tomar forma. Durante aquele ano que lhe restava, treinou quase sem parar. Todas as noites, antes de dormir, olhava para o espelho e ensaiava a posição de atirar, para o corpo ganhar a memória do movimento. E em 1939, lá estava ele, para discutir o campeonato nacional. Ao chegar ao local da prova, foi felicitado pelos companheiros — que pensavam que Károly ali estava apenas para os apoiar. “Vim para competir convosco!”, ripostou.

E não é que, não só competiu como ainda venceu a competição? O desafio de atirar com a mão esquerda estava superado. Agora havia que criar novas metas. O técnico Laszlo Torok lançou-lhe novo repto: “Vais lutar pelo título olímpico”.

Ãnnnn?” — terá pensado o atleta. Mas, dez anos e uma Guerra Mundial depois, no verão de 1948, lá estava o atleta em Londres, com 38 anos, para discutir o título nos Jogos Olímpicos de Londres — os primeiros no pós-Guerra. Tal como tinha acontecido no campeonato nacional de 1939, os companheiros de profissão duvidaram. “O que fazes aqui?”, perguntou-lhe Carlos Valente — o argentino que, um ano antes, se tinha sagrado campeão e recordista mundial em pistola rápida de 25 metros, com 570 pontos. Seria membro da equipa técnica? Seria júri? Károly desfez-lhe as dúvidas. “Vim aqui para aprender”.

O dia em que Károly Takács fez o que ainda não tinha sido feito

E era chegado o dia 4 de agosto — há precisamente 70 anos. Era o dia da prova. Ainda haveria um azar (outro) a ensombrar o percurso do húngaro: ao pegar na arma, para a última série, ela disparou involuntariamente — fazendo lembrar o acidente que tinha acontecido dez anos antes. Os argentinos, apoiantes de Carlos Valente, ainda fizeram queixa à organização, para que aquele tiro inadvertido contasse. Nada feito. Os juízes deram razão a Takács, que ainda acertou no círculo número 10, o de maior pontuação, nos últimos cinco disparos. Fez 580 pontos — mais dez do que o rival argentino –, a apenas 20 do máximo que podia ter obtido. Sagrou-se campeão olímpico e recordista mundial. No final, Carlos Valente reconheceu a superioridade do adversário. “Capitão, aprendeu o suficiente”, disse-lhe no pódio.

A história poderia ter acabado aqui — e já seria digna de ser lembrada várias gerações depois. Mas ainda havia mais um capítulo, a ser escrito passados quatro anos. Jogos Olímpicos de 1952, em Helsínquia. Károly Takács, já com 42 anos, voltava a competir. E voltava a ganhar — tornando-se no primeiro atleta a ser bicampeão olímpico na disciplina de pistola rápida. Deixou para trás o compatriota Szilard Kun, com menos um ponto. Valente, que terminou em quarto, voltou a deixar-lhe uma mensagem no final. “Capitão, aprendeu muito. É tempo de se retirar e ensinar-me a mim”.

A história não haveria de o permitir — o argentino morreria novo, aos 38 anos, num acidente de avião. Mas o ensinamento maior de Károly Takács ficaria na história que escreveu. Um dia, quando questionado sobre a descrença dos rivais, respondeu: “Não os culpo. Eles pensavam que eu tinha apenas dois braços. Mas tinha mais um, na cabeça”.