Não vão faltar grandes referências da música de dança nesta edição do LISB-ON. Além dos franceses St Germain, importantes representantes da house mais jazzística e descontraída dos anos 1990, anunciados no passado dia 9 de agosto, quase à última hora, vão passar também pelo Parque Eduardo VII, em Lisboa, Kerri Chandler, Maceo Plex, Rødhåd ou Todd Terje. Ainda assim, é difícil não ver em Mr. Fingers — um dos muitos pseudónimos do músico, produtor e empreendedor Larry Heard– o nome maior do cartaz do melhor festival de música de dança diurno da capital, que vai transformar o Parque Eduardo VII num “jardim sonoro” (como a organização lhe chama) com raves tranquilas. Os afters, mais enérgicos, são noutros pontos da cidade. Mas já lá vamos.

Voltemos, por agora, a Mr. Fingers. Há razões de sobra para que a atuação deste norte-americano de 58 anos no Parque Eduardo VII, ao final da tarde de domingo, dia 2 de setembro, seja histórica e imperdível. Estamos a falar de uma lenda viva da música eletrónica, da famosa house de Chicago que Heard ajudou a impulsionar nos anos 1980 e acabou por abandonar ao trocar a cidade pela mais tranquila Memphis, no Tennessee. Nada de contraditório, até porque a música de Larry Heard foi sempre aberta ao mundo e a outros estilos musicais, da soul ao jazz, do rhythm and blues ao gospel. Nunca foi possível circunscrevê-la a Chicago. Foi só decisiva para que a cidade, em particular a zona sul, se firmasse como um dos pontos de referência da música eletrónica mundial (numa altura em que ainda não havia EDMs, Tiestos, David Guettas ou outros fenómenos mais maquinais, histriónicos, juvenis e massificados).

Acresce que Larry Heard só tinha atuado uma vez em Portugal, “penso que numa cidade chamada Faro” (palavras dele), há tantos anos que já nem se recorda ao certo, antes de atuar no mês passado no Elétrico Festival, no Porto. Depois de um regresso mais ativo ao circuito de digressões e às edições discográficas, o músico e produtor vai voltar ao nosso país e estreiar-se em Lisboa, no âmbito da edição, em abril, de um álbum duplo (triplo em vinil) chamado Cerebral Hemispheres. O disco que foi um acontecimento — foi o primeiro de Larry Heard com o seu mais famoso pseudónimo em 24 anos.

O álbum mereceu atenção da imprensa internacional, da revista de especialidade Resident Advisor aos mais generalistas The Guardian e Pitchfork. Justificou uma capa na revista de música alternativa (bastante experimental) The Wire. Nada disto surpreende, até pela importância que Larry Heard teve na música de dança e pela forma como a misturou com outros estilos musicais em produções de excelência. Fê-lo, por exemplo, nos anos 1980, com êxitos mundiais à escala alternativa como “Can You Feel It” (1986), no tema de título quase premonitório “Bring down the walls” (1987) ou em “Mystery of Love”, este composto com os vocalistas Robert Owens (com quem colaborou muitos anos) e Ron Wilson no trio Fingers Inc.. Este foi mais tarde reutilizado e transformado via sample pela celebridade do hip hop Kanye West em “Fade“.

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A chegada ao sucesso, porém, não foi fácil. “Ninguém me deu nada”, afirmou Heard ao Observador durante uma entrevista feita por Skype a partir da sua casa no Tenessee. O músico cresceu no sul de Chicago numa família de classe média-baixa. O pai era um polícia negro, o que no final dos anos 60 e início dos anos 70 não era muito comum. Talvez por isso tivesse alguma espécie de trauma. Era “um bully“, nas palavras do músico, que exercia violência física e psicológica sobre a mãe de Larry Heard.

Naquela altura, a violência doméstica era um problema bastante comum, e na família de Heard havia outras vítimas. No meio de tantos problemas e traumas, a música era a única coisa que unia os familiares do músico. “Ouvíamos todo diferentes tipos de música — Os meus pais, as minhas tias, os meus tios, os meus avós. Blues, jazz, gospel, soul, muito doo-wop, big bands de jazz como as do Count Basie e Sarah Vaughn. Foi a ouvir isso em casa que cresci”, recordou, acrescentando: “Era algo positivo que ajudava o ambiente negativo em que estávamos envolvidos e de que estávamos rodeados. Era ma espécie de antídoto, é isso que a música é: quando a estás a ouvir e depois a vais criar, estás a acrescentar beleza ao mundo, em vez de lhe aumentares os problemas.

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Posted by LISB_ON JARDIM SONORO on Friday, March 9, 2018

A música entrou assim muito cedo na vida de Larry Heard e também na dos seus irmãos mais velhos. Um deles “trabalha em medicina” e “ainda toca guitarra de vez em quando”, o outro está “reformado, a viver em Chicago”. O músico cresceu com um piano em casa e, entre os nove e os dez anos, começou a comprar discos: “A música era um assunto sério mesmo nessa idade. Gastava o dinheiro que tinha para o almoço em discos — era sério a esse ponto. Os adultos dificilmente fazem um sacrifício por alguma coisa, mais ainda hoje em dia. Mas eu fazia-o porque adorava música. Só não sabia no que é que esse interesse iria resultar”.

Resultou em muito boa música. Depois de pequenos trabalhos em “stands de doces e de pipocas, pequenas empresas familiares”, os pais separaram-se e Larry Heard começou a trabalhar aos 15 anos para “ajudar” a família. E onde trabalhou? “No McDonald’s, numa loja de donuts e depois, a partir dos 18 anos, no governo, no departamento de administração da segurança social.” Este último emprego, mais recompensador economicamente, foi o mais duradouro, e permitiu-lhe viver sem dificuldades. Larry Heard, que era teclista e guitarrista mas tinha mais jeito para a bateria, aliava o emprego a bandas de covers de prog-rock. Manteve-o até aos 27 anos, altura em que o trocou pela incerteza da música.

“Não sigo regras. Eu e as pessoas que me são próximas estabelecemos as regras”

Não se arrependeu da escolha. Só se arrependeu de, depois do sucesso em Chicago e depois de abandonar a cidade por se ter tornado numa celebridade no nichie indie, o que levava gente a ir bater-lhe à porta e a importuná-lo nas discotecas e salas de concerto, ter “neglicenciado”  a sua produção musical nos últimos anos, para se dedicar às atuações como DJ e aos remixes para outros artistas. “Não tive grande opção, tinha contas para pagar, como toda a gente”, contou-nos, rindo-se.

Agora está de regresso e muito ativo. Dedicou tempo à composição de um EP de seis faixas, em 2016, e de um álbum de quase duas horas, o já referido Cerebral Hemispheres, que tem uma música inspirada num dia passado em Portugal chamada “A Day in Portugal”. Não me lembro do dia ao certo, mas foi num dia em que atuei como DJ numa cidade, penso que se chamava Faro. Foi um dia em que estive menos de 24 horas na cidade, é disso que me lembro: estar lá pouco tempo, talvez tirar um par de fotografias. Basicamente, vi o interior de um quarto de hotel, daí fui diretamente para o interior de uma discoteca e depois fui direto para o aeroporto e para o interior de um avião. Espero ter mais tempo para conhecer melhor Portugal desta vez”, contou ao Observador.

O disco está dividido em duas partes: a primeira é mais cantada, ondulante, a ‘flirtar’ com o jazz e com menos energia de pista de dança (espécie de música de elevador, em bom), e a segunda é mais ácida, com uma intensidade e nervo que escondem os 58 anos e a forma serena e calma como fala, ri e vive. “Música é música, não interessa o género”, explicou-nos Heard, como se quisesse logo impedir compartimentações estílisticas na discussão. Parece simples, afinal: “Só há dois tipos de música, a música com que te identificas e a música que não compreendes. Oiço de tudo: jazz, provavelmente mais reggae do que as pessoas imaginam… Mas não preciso de ouvir alguém dizer quais são os géneros ou estilos musicais, esse tipo de coisas. Só preciso de ouvir a música, passar a parte técnica à frente”.

Independente, confiante, Larry Heard acrescentou que trabalhou sempre “fora da indústria musical”. “Fundei a minha própria editora, faço os meus próprios planos, não preciso de fazer o que os outros fazem, faço o que me sinto confiante em fazer. Não sigo regras. Eu e as pessoas que me são próximas estabelecemos as regras.”

O homem que não gosta de falar de política, que se limita a dizer que Barack Obama “percebia um bocadinho do modo como um tipo comum, trabalhador, pensa, porque não cresceu com privilégios, alheado da maioria das pessoas, como provavelmente cresceu o Donald Trump”, vai atuar no LISB-ON com um tal de “Mr. White”, vocalista que o acompanha. As ferramentas serão simples: microfone, computadores, mesa de mistura, teclado. O momento, porém, será solene. O espírito da house de Chicago — e tão espiritual, quase de tom religioso, é a de Larry Heard — estará bem vivo no Parque Eduardo VII. Mesmo que ele tenha extravasado a cidade, a house e quaisquer fronteiras, Heard não renega o passado. Não precisa, não tem nada a provar, só boa música para nos dar já no domingo, em Lisboa.

LISB-ON: dançar no jardim (e nos afters)

O festival LISB-ON decorre durante três dias: sexta-feira, 31 de agosto; sábado, 1 de setembro; domingo, 2 de setembro. As atuações principais decorrerão durante a tarde, com Kerri Chandler, Maceo Plex, Margaret Dygas, Mr. Fingers aka Larry Heard, Rødhåd, Sassy J, St Germain live band, Todd Terje e Vakula em destaque. Os passes gerais para os três dias de festival custam 60 euros e os bilhetes diários custam 25 euros. As atuações começam logo a seguir ao almoço, às 14h, prosseguindo até às 23h, 00h00 ou 1h, consoante o dia.

Há ainda festas noturnas relacionadas com o festival. Sexta-feira, dia 31, há uma after party na discoteca Ministerium Club (no Terreiro do Paço), com a australiana Bella Sarris e os portugueses Mary B e Kaesar. O acesso à festa custa 15 euros até às 2h30 ou 18 euros depois das 2h30, para todos, sendo que os portadores de bilhete para o festival têm direito a uma bebida. Sábado, dia 1 de setembro, decorre no mesmo local a “festa oficial” do festival, com atuações de Anja Schneider, Vanessa Kokeshi e CARDIA. Ainda não há informações sobre o custo das entradas.