Houve personalidades da igreja e dos direitos civis. Da magistratura e do cinema. Da música, claro, e do desporto. Republicanos e democratas. Brancos e negros. É difícil imaginar alguém — ou algo — que conseguisse reunir, no mesmo tempo e nos mesmo espaço, pessoas tão diferentes e de um espetro tão alargado. Aretha Franklin fê-lo. O funeral da cantora decorreu esta sexta-feira no templo Greater Grace, em Detroit, começou com 40 minutos de atraso, às 10h40 locais (mais cinco horas em Portugal continental), e durou bem mais do que as cinco horas inicialmente previstas. Não faltou quem quisesse prestar um último tributo à rainha da soul, pondo assim um ponto final numa longa semana de luto e celebração.

Foi o caso do antigo Presidente norte-americano Bill Clinton e da mulher Hillary, dos pastores e líderes dos direitos civis Al Sharpton e Jesse Jackson, da atriz Cicely Tyson, do editor Clive Davis, do antigo procurador-geral Eric Holder e também do mayor de Detroit, Mike Duggan, que aproveitou para anunciar que o nome do Chene Park, um local de concertos da zona, vai mudar de nome para Aretha Franklin Park.

De fora ficaram os populares, que puderam acompanhar tudo em ecrãs gigantes colocados no exterior do recinto ou através das transmissões em direito na televisão norte-americana e na Internet. Na cerimónia faltou a voz de Aretha, mas não faltou quem a cantasse. Desde Ariana Grande, que interpretou (You Make Me Feel Like) A Natural Woman, a Jennifer Hudson, que cantou Amazing Grace, passando ainda por Chaka Khan, que deu voz a I’m Going Up Yonder.

Ainda antes do funeral, outro momento icónico: mais de 100 Cadillacs cor-de-rosa desfilaram pelas ruas, escoltando o corpo da cantora (que chegou num caixão dourado). A homenagem foi inspirada numa passagem da música Freeway of Love: “We goin’ ridin’ on the freeway of love in my pink Cadillac” (Vamos andando na autoestrada do amor no meu Cadillac cor-de-rosa).

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Bill Clinton pegou no telemóvel e deixou soar a “voz de uma geração”

Bill Clinton foi um dos que subiu ao palanque para falar na amiga Aretha. A certa altura, pegou no telemóvel, encostou-o ao microfone com o qual falava aos presentes e deixou tocar a música “Think”, lançada em 1968 — e na qual a artista falava sobre liberdade. Aquela pareceu-lhe a melhor homenagem à que considerou ser “a voz de uma geração, talvez a voz de um século”.

Clintou recordou um tempo em que ainda não era Presidente e em que a mulher Hillary ainda não era primeira-dama, mas em que eram os dois groupies de Aretha Franklin — e que seguiam de perto a carreira da cantora. “Ela juntou-nos todos aqui. Não só pelo talento incrível que tinha, mas porque viveu com coragem. Não sem medos, mas ultrapassando-os. Viveu com fé, não sem falhas, mas ultrapassando-as. Viveu com poder, não sem fraquezas, mas ultrapassando-as”, disse, para depois sintetizar tudo na frase que juntava tanta gente na mesma sala. “Eu simplesmente amava-a”.

O antigo Presidente falou ainda sobre os valores que julga terem regido a carreira de Aretha. “Ela preocupava-se com as pessoas que sofrem (…). Ela preocupava-se com pessoas que estavam desapontadas. Ela preocupava-se com pessoas que não tinham tido o mesmo sucesso do que ela”, considerou.

George W. Bush: “O seu talento notável ajudou a moldar o património artístico e cultural da nossa nação”

De um antigo Presidente para outro, George W. Bush não esteve presente na cerimónia, mas não deixou de enviar uma mensagem, na qual realçou o contributo da cantora para “moldar o património artístico e cultural” da nação e lembrou o momento em que lhe atribuiu a Medalha Presidencial da Liberdade, em 2005. “Tenho orgulho de ter conhecido a Aretha e estou grato pelo facto de que a sua música vai continuar a trazer alegria para milhões de gerações futuras”, disse.

Leia na íntegra a carta de George W.Bush:

À família de Aretha L.Frankin,

A Laura e eu estamos profundamente tristes pela perda da rainha da soul, Aretha Franklin. Os nossos corações doem por vocês e as nossas preces estão convosco. Aretha foi uma mulher de sucessos com um caráter profundo e um coração amoroso. Ela fez grandes e duradouras contribuições para a música americana com o seu estilo gospel e voz distinta. 

O seu talento notável ajudou a moldar o património artístico e cultural da nossa nação e, em 2005, tive o privilégio de homenageá-la com o maior prémio civil do nosso país, a Medalha Presidencial da Liberdade. Tenho orgulho de ter conhecido a Aretha e estou grato pelo facto de que a sua música vai continuar a trazer alegria para milhões de gerações futuras. Enquanto lembra e homenageia a vida de Aretha, que o Todo Poderoso o conforte na sua dor e o sustente durante esta altura dificil. Laura e eu enviamos as nossas profundas condolências.

Que Deus vos abençoe,

George W. Bush 

Obama: “Aretha captou os desejos humanos mais profundos e levantou milhões”

Tal como Bush, Barack Obama não pôde estar presente na cerimónia fúnebre mas deixou uma mensagem. “O trabalho da Aretha refletia o melhor da história americana em toda a sua esperança e coração, coragem e beleza inconfundível”, referiu. O ex-Presidente sublinhou ainda a capacidade da artista de inspirar “os vulneráveis, os oprimidos e todos os que apenas precisavam de um pouco de amor”.

Leia na íntegra a carta de Barack Obama:

Caros amigos e familiares da Aretha,

A Michelle e eu enviamos as nossas sinceras condolências a todos os que se reuniram em Detroit e juntamo-nos a vocês para lembrar e celebrar a vida da rainha da soul.

Desde tenra idade, Aretha Franklin encantou o mundo de qualquer pessoa que tenha tido o prazer de ouvir a sua voz. Quer por reunir as pessoas através de misturas emocionantes de géneros ou a promover causas importantes utilizando o seu poder da música, o trabalho da Aretha refletia o melhor da história americana. Em toda a sua esperança e coração, coragem e beleza inconfundível. No exemplo que ela deu como artista e como cidadã, Aretha incorporou as virtudes mais reverentes de perdão e reconciliação. 

A sua música captou alguns dos nossos desejos humanos mais profundos, nomeadamente o afeto e o respeito e, através da sua voz, a sua própria voz, Aretha levantou milhões, capacitando a inspirando os vulneráveis, os oprimido e todos os que apenas precisavam de um pouco de amor. Aretha era verdadeiramente única e, ao prestarem esta homenagem, saibam que estaremos a rezar por vocês e a pensar em todos os entes queridos de Aretha nos próximos dias e semanas. 

Victory Franklin: “Nada soa melhor aos meus ouvidos do que a minha avó a cantar”

A neta da cantora, Victorie Franklin, protagonizou um dos discursos emocionados do dia, recordando como foi crescer tendo como avó uma cantora de dimensão mundial. “Lembro-me de ser criança e as pessoas perguntarem-me como era ser neta da Aretha Franklin. Eu encolhia sempre os ombros e dizia que não sabia. Era simplesmente a minha avó”.

“Ir assistir aos seus concertos e vê-la cantar era a melhor sensação no mundo. Nada soa melhor aos meus ouvidos do que a minha avó a cantar. A voz dela fazia-nos sentir coisas. Sente-se cada palavra, cada nota, cada emoção. A voz dela trazia paz“, acrescentou a neta.

Netos e filhos de Aretha Franklin abraçam-se no final das intervenções. (Scott Olson/Getty Images)

Também Jordan Franklin, neto de Aretha, quis deixar um agradecimento emocionado. “Sei no meu coração que agora estás feliz e é só isso que me importa. Não há palavras suficientes para expressar o que significas para mim, avó. Obrigada por me amares, obrigado por acreditares em mim como acreditavas e obrigado por pores a família em primeiro lugar”.

Isaiah Thomas: “Ter a minha mãe sentada ao lado da Aretha no estádio era um momento tão poderoso”

O jogador de NBA Isaiah Thomas — que representou os Detoit Pistons, clube da terra onde Aretha viveu e morreu — subiu ao palco para relembrar alguns momentos com a amiga de longa data. O basquetebolista não esquece a forma como a cantora o recebeu em Detroit “de braços abertos”, como o ensinou a lidar com a fama, a pagar as suas contas e, acima de tudo, a companhia que fez à sua mãe.

Jogador da NBA Isaiah Thomas recordou a amizade de Aretha Franklin com a sua mãe. (Scott Olson/Getty Images)

“Ter a minha mãe sentada ao lado da Aretha, no estádio, era um momento tão poderoso e inspirador para mim”, referiu, acrescentando que quando olhava para as duas, a partir do campo, e “ficava a pensar se sabiam quantas noites e quantas lágrimas ela derramou a ouvir a música da Aretha”.

Era na cozinha que ouvia a sua mãe trautear as letras das músicas de rainha da soul, mesmo antes de a conhecer pessoalmente. “A música I Say a Little Prayer for You significava muito para nós”.