A destruição do Museu Nacional do Rio de Janeiro é “aterradora” e representa “uma perda irrecuperável para a humanidade”, classificou o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, contactado pelo Observador nesta segunda-feira. António Filipe Pimentel disse tratar-se de um museu “extraordinário do ponto de vista das coleções, mas não, infelizmente, do ponto de vista do funcionamento e da apresentação, razão pela qual a tragédia aconteceu”.

Por seu lado, a subdiretora do Museu Nacional de História Natural, também situado em Lisboa, instituição congénere da que agora foi destruída, considerou estarmos perante “uma das maiores tragédias da história dos museus em qualquer parte do mundo”. No dizer de Marta Lourenço, o património e as coleções do museu brasileiro foram recolhidas ao longo de 200 anos e são “completamente insubstituíveis”. “Nenhum museu consegue recuperar de uma tragédia destas”, sublinhou.

O diretor do MNAA visitou várias vezes o Museu Nacional do Rio de Janeiro durante a década de 1990. Numa avaliação preliminar às ondas de choque provocadas pela catástrofe, disse que a atividade museográfica no Brasil “poderá vir a ser afetada durante anos”. Deu como exemplo uma exposição sobre o retrato histórico de D. João VI, que está a ser organizada por uma outra instituição carioca, o Museu Histórico Nacional. “Imagino que a exposição esteja comprometida, porque muitas das obras escolhidas iriam ser cedidas pelo museu que agora ficou destruído. O MNAA também iria emprestar obras, incluindo dois esboços de retratos de D. João VI, da autoria de Domingos Sequeira”, adiantou António Filipe Pimentel.

O responsável pela área de património material do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional do Brasil (IPHAN) disse ao Observador que a destruição do acervo do museu é uma “perda incalculável”. Andrey Rosenthal lembrou que a instituição tinha à guarda “um tesouro que pertencia ao brasileiro e à humanidade”, incluindo coleções entomológicas, antropológicas, históricas e um acervo de paleontologia e mineralogia.

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Situado na Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a escassos minutos do famoso estádio do Maracanã, o edifício do museu foi tomado por um incêndio de grandes proporções no domingo à noite. As chamas terão começados a deflagrar por volta das 19h30 (23h30, hora de Lisboa), duas horas e meia depois de o museu ter fechado ao público. O alerta foi dado por funcionários da segurança, que terão visto o telhado em chamas, relata a imprensa brasileira.

Foram mobilizados 80 bombeiros de 12 corporações, que extinguiram o fogo ao cabo de seis horas, já durante a madrugada de domingo para segunda-feira. O reitor da UFRJ, Roberto Leher, disse entretanto que “faltou logística e capacidade” aos bombeiros.

“Foi o maior museu do continente americano”

O Museu Nacional do Rio de Janeiro é a instituição científica mais antiga do Brasil, de acordo com informações do próprio museu. Criado em 1818 por D. João V, poucos anos antes da independência do Brasil, começou por se situar no Campo de Santana, a poucos quilómetros do local atual. Só a partir de 1892 foi transferido para o Palácio de São Cristóvão, o edifício de estilo neoclássico agora consumido pelas chamas. O palácio foi residência da família real portuguesa e, a seguir à independência, da família imperial brasileira – até à proclamação da República, em 1889.

“O museu surgiu no âmbito do movimento europeu de criação de museus de História Natural, no contexto dos equipamentos de referência que D. João VI estava então a criar no Brasil para estudar e valorizar os recursos naturais”, explicou António Filipe Pimentel, que é doutorado em História de Arte e especialista em História Cultural e Política da Época Moderna. “O museu ganhou escala na área de antropolologia e arqueologia, nomeadamente com a coleção de egiptologia de D. Pedro II, uma coleção extraordinária na época. No final do século XIX, foi o maior museu do continente americano. No século XX, começou a ter falta de orçamento para adquirir obras e modernizar a estrutura.”

Em 1948, foi integrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, então chamada Universidade do Brasil) e passou a depender do orçamento desta instituição, considerado deficitário. Os sinais de degradação e ruína, no interior e no exterior do museu, eram evidentes há vários anos. “Paredes descascadas, fios elétricos expostos, má conservação generalizada”, escreveu a Folha de S. Paulo.

O edifício tem uma área útil de 13,600 metros quadrados, com 122 salas e um acervo de 20 milhões de objetos. Não se registaram feridos durante o incêndio, mas ao início da tarde desta segunda-feira ainda se ignorava a dimensão da calamidade. O Observador pediu informações à UFRJ, que remeteu esclarecimentos para uma nota entretanto publicada no site da universidade. Não se sabe se as reservas do museu, isto é, o conjunto de peças em arquivo, estavam ou não no edifício e até que ponto foram afetadas. A BBC Brasil relatou que alguns funcionários do museu conseguiram resgatar artefactos e espécimes de forma voluntariosa.

A nota publicada na segunda-feira pela UFRJ considerava que “o inadmissível acontecimento” tem causas “nitidamente identificáveis”, nomeadamente a “falta de financiamento adequado” do ensino superior público, por parte do governo. “Em especial nos últimos quatro anos, quando as universidades federais sofreram drástica redução orçamentária.” A mesma nota indicava que ainda não tinham sido apuradas as causas do incêndio e o motivo da rápida propagação das chamas.

Andrey Rosenthal, do IPHAN, adiantou que já teve início a avaliação dos estragos. “Só a partir de um diagnóstico poderemos atuar para a recuperação de alguns bens”, disse. “O museu terá que ser restaurado, dando início a um novo período de sua história de mais de dois séculos”, acrescentou.

Para já, disse Marta Lourenço, do Museu Nacional de História Natural,  é preciso “meter mãos à obra e reconstruir”. “Os danos serão mistos, parte em resultado do incêndio, parte da água dos bombeiros, e os primeiros dias são críticos. É certamente possível recuperar exemplares ou informação associada.”

Em segundo lugar, entende a mesma responsável — doutorada em Epistemologia e História da Tecnologia —, é preciso “aprender as lições do que aconteceu”. “Riscos de catástrofes existem sempre, mas a responsabilidade de perservar o património, a memória e a identidade dos países exige que nos comprometamos a sério com a prevenção. O antes é que é importante, não é o depois”, afirmou Marta Lourenço.