É o principal argumento da defesa de Hélder Bataglia na Operação Marquês: a ter cometido os cinco crimes de branqueamento e dois crimes de falsificação de documento de que é acusado pelo Ministério Público (MP), o empresário não poderia ser julgado em Portugal. Por duas razões: os alegados crimes não foram cometidos em território português, mas em Angola; e naquele país as autoridades já o tinham investigado por suspeitas idênticas, num processo que acabou arquivado, logo a investigação não pode ser replicada noutro país. São estes dois dos principais argumentos da defesa do empresário no pedido de abertura de instrução, agora entregue, e a que o Observador teve acesso.

No documento de quase 200 páginas, a defesa do luso-angolano Hélder Bataglia pede ao juiz de instrução criminal que olhe para a acusação, e para as provas, e reconheça que a lei portuguesa não tem competência para julgar os factos contra o homem que conseguiu uma licença bancária para que Ricardo Salgado abrisse um BES em Angola.  No processo que envolve o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, Hélder Bataglia é acusado de um crime de abuso de confiança, cinco de branqueamento, dois crimes de falsificação de documento e dois de fraude fiscal qualificada. Mas o advogado Rui Patrício garante que o seu cliente não praticou nenhum deles. E explica porquê.

Bataglia, como lembra a sua defesa, sempre colaborou com a investigação, por carta rogatória a partir de Angola e presencialmente em Portugal,  quase um ano após ter sido constituído arguido (em 2016). E até admitiu ao Ministério Público que fez chegar 12 milhões de euros às contas de Carlos Santos Silva, amigo de Sócrates, por ordem de Salgado. Tudo por uma questão de proximidade, como reforça agora a defesa, para explicar que o empresário mal conhecia Carlos Santos Silva, o amigo de Sócrates. Conheceu-o num convívio promovido por um primo do ex-primeiro-ministro.

Interrogatório a Hélder Bataglia. “Não se dizia ‘não’ ao dr. Ricardo Salgado naquela altura”

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Bataglia limitava-se a mandar ordens de transferência para a Suíça

A defesa garante que Bataglia não participou em qualquer esquema criminoso, ao contrário do que refere o Ministério Público, para fazer chegar dinheiro ao ex-primeiro-ministro. Segundo o requerimento de abertura de instrução, o arguido “cingia-se” a efetuar transferências bancárias para as contas definidas por Carlos Santos Silva, com origem em contas pertencentes a “entidades integrantes” do Grupo Espírito Santo. Para tal, pedia a um gestor de confiança, Michel Canals, que fizesse as transferências. Primeiro no banco suíço UBS, depois no Credit Suisse. O arguido garante total desconhecimento da “proveniência” desse dinheiro. Mais. Bataglia disse mesmo desconhecer que o destinatário final destes valores fosse José Sócrates.

Bataglia só se terá apercebido mais tarde que algumas dessas transferências tinham, também, como destinatário o arguido Joaquim Barroca, à data administrador do Grupo Lena, e foi por isso que exigiu a Carlos Santos Silva que lhe fosse apresentado — o que aconteceu em 2014. Os advogados de Bataglia referem, assim, que todos os atos que praticou e que pudessem constituir crime foram feitos fora de Portugal, mais concretamente em Angola, portanto a lei portuguesa não pode ser aplicada neste caso. 

Mesmo quando Bataglia se encontrou com Canals no Hotel Sheraton do Porto, em que assinou um documento a ordenar uma transferência de 6 milhões de euros para a conta do primo de Sócrates, não terá praticado um crime de branqueamento, na ótica da defesa. Isto porque, segundo a letra da lei, o crime de branqueamento corresponde à operação em si, ou seja, à transferência. E, naquele momento, em território nacional, Bataglia só assinou um papel. O alegado crime só teria sido cometido em Angola.

Também os crimes de falsificação de que vem acusado, dizem os advogados, extravasam a competência territorial nacional. Um dos crimes está relacionado com um contrato-promessa de compra e venda do imóvel “Kanhangulo”, em Luanda. Diz o MP que este foi um contrato fictício para justificar uma transferência de 8 milhões de euros, que acabou por revelar-se um sinal que não foi devolvido. Não se tendo seguido, depois, um contrato definitivo. Mas, mais uma vez, a defesa lembra que este contrato foi celebrado em Luanda por duas empresas de direito angolano. Logo, não existirá qualquer ligação a Portugal. Mais. Não foi depois celebrado o contrato definitivo por “vicissitudes” da economia angolana, quando o mercado imobiliário desvalorizou.

O segundo crime de falsificação prende-se, de acordo com a acusação, com um contrato de prestação de serviços que o empresário assinou com a ES Enterprises para prestar assessoria aquela empresa, na tentativa de encontrar mais negócios e de procurar oportunidades no setor bancário na República do Congo. Ora, esta empresa tinha sede num paraíso fiscal, enquanto o domicílio efetivo de Bataglia é em Luanda. Logo, não haverá conexão ao território português e não se pode aplicar a lei portuguesa, prossegue a defesa.

Crimes de branqueamento já tinha sido investigados em Angola

No requerimento agora entregue, o advogado Rui Patrício lembra ainda que os crimes de branqueamento de capitais, de que o seu cliente vem acusado, já foram alvo de uma investigação pelas autoridades angolanas, mas o processo acabaria por ser arquivado. Em parte graças à Lei da Amnistia, que veio perdoar crimes desta natureza praticados até novembro de 2015. O advogado sublinha que, assim sendo, deve Portugal respeitar as normas internacionais e não duplicar a investigação, aceitando o despacho de arquivamento então proferido. Aliás, o advogado pede mesmo que as autoridades portuguesas peçam às suas congéneres angolanas uma cópia desse processo.

Os argumentos esgrimidos para convencer o juiz a não levar o arguido a julgamento não se ficam por aqui. Aos olhos da acusação, quatro dos pagamentos feitos por Bataglia e que viriam, por fim, parar às mãos de Sócrates, tinham como objetivo bloquear a Oferta Pública de Aquisição da Sonae à PT. Mas, na interpretação da defesa, estes pagamentos não podem traduzir-se em quatro crimes de branqueamento.

É que um suspeito só pode “branquear” dinheiro se este for proveniente de atividades ilícitas. Como podia o dinheiro ser “lavado” se ele ainda não estava na posse de José Sócrates?, interroga, por outras palavras, a defesa, no requerimento já entregue. Para dar uma resposta de seguida: até chegar às mãos de Sócrates, o dinheiro era apenas, e tão só, uma “quantia em dinheiro”. E não um suborno. “Bataglia não introduziu qualquer quantia monetária de proveniência ilícita, na economia lícita”, logo, não “lavou” dinheiro, lê-se. Ou seja, só quando o corrompido realiza operações com esse dinheiro tentando ocultar a proveniência ilícita é que está a incorrer num crime de branqueamento.

Há ainda um episódio na acusação que a defesa tenta desmontar no pedido de abertura de instrução. Trata-se de um alegado acordo entre Bataglia e Salgado para que o primeiro transferisse para o segundo dinheiro de várias entidades do Grupo GES. No entanto, alega a defesa, o Ministério Público aproveitou o mesmo acordo para acusar o empresário de dois crimes diferentes: mais um de branqueamento (num total de cinco) e um outro de abuso de confiança. Só que, lembra a defesa, não pode haver dupla valoração de um ato, ou seja, não pode o Ministério Público apreciar de duas formas diferente a mesma circunstância e não pode o arguido ser penalizado duas vezes pelo mesmo crime.

Por outro lado, os advogados do luso-angolano referem que destas transferências constam 2,3 milhões de euros, acrescidos de juros, que Bataglia devia a Salgado desde 1999 e que saldou em 2010, depois de celebrar o contrato de prestação de serviços com uma das suas empresas e estar desafogado financeiramente. Aliás, reforça, foi mesmo apreendido um comprovativo deste empréstimo no cofre de Salgado, durante as buscas à sua casa.

Bataglia, filho de um angolano mas nascido no Seixal, enfrenta ainda uma acusação de dois crimes de fraude fiscal qualificada por não ter declarado os rendimentos de 2006 e 2010 à Autoridade Tributária. Mas, refere a defesa, tendo Bataglia domicílio fiscal em Luanda não pode ser agente da fraude fiscal. Mais. A defesa refere que a lei obriga qualquer contribuinte a declarar o que recebe, mesmo que o tenha recebido de forma ilícita. Mas isso é “auto-incriminação”, logo, essa norma deve ser considerada “inconstitucional”.

Esta terça-feira termina o prazo para os 28 arguidos do processo que nasceu da Operação Marquês pedirem a abertura de instrução. A lei confere, no entanto, mais três dias de prazo às defesas, mediante pagamento de uma multa. A fase instrutória é opcional e serve para que os elementos recolhidos pelo Ministério Público e que deram origem à acusação sejam apreciados por um juiz de instrução — que decide se há de facto matéria para seguir para o julgamento.

Até às 16h00 de segunda-feira, segundo confirmou a Procuradoria, chegaram os pedidos de abertura de instrução dos arguidos Henrique Granadeiro, Zeinal Bava, Bárbara Vara e Joaquim Barroca. Mas os advogados dos ex-ministros José Sócrates e Armando Vara e do empresário Carlos Santos Silva também já confirmaram que não vão prescindir desta fase e vão pedir a instrução.