Barcelos é o concelho com o maior número de freguesias em Portugal e é também dos que tem visto surgir mais bandas de rock experimental das últimas décadas. Nos anos 90 era mesmo apelidada de Seattle de Portugal, um fenómeno ao qual Joaquim Durães, mais conhecido como Fua, não ficou indiferente. Ele, de sotaque nasalado graças a uma constipação de última hora, garante que nunca fez parte de uma banda, era mais do tipo de ir ver os ensaios dos amigos e, nesses convívios de garagem, nada lhe passou ao lado.

“Aqui sempre houve muita ajuda e troca de impressões entre os músicos. E depois havia também aquele cliché de ver um gajo que ontem tocou em Paredes de Coura e hoje esse mesmo gajo estar sentado ao nosso lado na mesa do café”.

Simultaneamente voyeur e personagem de um guião ao qual não havia escapatória possível – “ou jogas futebol, ou fumas charros ou formas uma banda,” chegou a brincar Márcio Laranjeira, cara-metade da Lovers & Lollypops, num documentário produzido pela Red Bull – Fua meteu-se na cena musical bem cedo, numa época “pré Milhões, pré Lovers, pré tudo”. “Apesar do meu auditório ser minúsculo, já tinha essa vontade de dar a conhecer os projetos, as bandas e os artistas que eu achava que mereciam destaque”.

Primeiro criou uma fanzine, depois começou a promover concertos “aqui e ali”, pequenas romarias pelas aldeias barcelenses, e chegou mesmo a organizar um festival algo invulgar em Carapeços. “Chamava-se Pesadelo Rock e foi um festival que surgiu de uma proposta dos Pesadelo Amarelo”, a claque do clube local Associação Desportiva Cultural de Carapeços (AC/DC). Consta que, se as coisas dessem para o torto, eles partiam-lhe as pernas. Mas o festival correu bem, estavam lançados os dados para o próximo.

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“Não pensávamos em nada”

Foi só em 2005 que Joaquim Durães e João Pimenta dos Green Machinhe, ALTO, 10.000 Russos (mais tarde juntar-se-ia Márcio Laranjeira) fundaram a Lovers & Lollypops, “não com o intuito de criar o Milhões, mas, mais uma vez, de promover e dar suporte de edição e palco para as bandas com quem nos relacionávamos”.

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A primeira delas foram os Green Machine, mais tarde surgiram nomes como os Glockenwise ou os Black Bombaim. Hoje já há quatro gerações de músicos de Barcelos a tocar em simultâneo, “com mais uma a despontar” e até um projeto que as junta a todas no mesmo espectro temporal, o Ensemble Insano. Este ano vão tocar novamente no Milhões de Festa, num concerto aberto à cidade que, não sendo surpresa, será apresentado num formato diferente, “essa sim será a surpresa”.

Mas voltando às origens, Fua recorda-se de um tempo em que “não pensávamos em nada”. Falamos do ano de 2006 quando a primeira edição do Milhões de Festa invadiu o bar portuense Uptown. Quatro dias, quatro bandas, a filosofia era “fazer a festa pela festa”, milhões dela “sem muitas ideais de futuro”.

Em 2007 o festival mudou-se para Braga e só em 2010 é que regressou a casa, Barcelos. “A partir daí começámos a ter uma consciência maior do que é que isto podia ser no futuro. Tínhamos muita gente órfã de algo mais independente e havia algumas sonoridades que na altura não estavam bem representadas ou não estavam de todo representadas nos festivais portugueses. Sentíamos que tínhamos algo interessante a propor e um público disponível para receber as nossas propostas.” A cidade primeiro estranhou, depois entranhou, “agora há uma maior disponibilidade de toda a gente para abraçar o festival.”

Câmara, comerciantes e a população em geral, todos são cúmplices voluntários e orgulhosos do Milhões de Festa, agarram-se aos triângulos como ao galo, sabem que é um símbolo regional com proporções globais. Quem mais agradece são as bandas barcelenses. E Fua explica:

“O festival alimenta os artistas de cá de uma forma invisível. Ou seja, coloca-os em contacto com uma série de estímulos e artistas que inevitavelmente vão influenciar o seu trabalho. É bom perceber que durante estes anos todos sempre demos espaço para as bandas de Barcelos se mostrarem e que elas em cima do palco fazem-se sentir não como uma banda local, mas como uma banda com tanta qualidade como aquelas que convidamos de fora para virem cá.”

É talvez nesta forma de estar descomplexada que reside o segredo do sucesso deste ciclo interminável, deste microclima que, como um sismo de várias réplicas, vai mostrando a sua força criativa deitando cá para fora projetos atrás de projetos, numa mistura de linguagens tão díspares como complementares.

No pó semearás, em Setembro colherás

Para a viragem de década, o Milhões de Festa resolveu quebrar com a tradição do calor tórrido de julho e abraçar setembro como o mês da sua celebração anual. “Setembro é um mês de renovação, dá-se um novo ciclo e nós queremos fazer parte dele. É mais uma experimentação, vamos ver como é que corre e perceber se Setembro poderá ser o nosso novo mês de pousio ou não.” Os míticos concertos na piscina, esses continuam firmes, até porque as previsões meteorológicas dão temperaturas perto dos 30 graus para estes próximos dias.

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O Palco Piscina, aliás, é uma das grandes imagens de marca do festival, com as bandas a tocarem durante a tarde para um público que chapinha rock como se estivesse numa aula de hidroginástica completamente anárquica e insanamente acelerada. “A ideia de fazer um palco na piscina surgiu de forma muito natural. Numa primeira visita ao espaço percebemos que tínhamos ali uma potencialidade que não queríamos desperdiçar. A partir daí foi só consubstanciar essa ideia tentando enquadrar os artistas com o feeling de estarem na piscina e convidar outros que são a antítese dessa ideia.” Uns e outros adoram ali estar, garante Fua, que para esta edição preparou uma série de novidades que passam por uma programação com “momentos imersivos”.

Performances, concertos participativos, aulas de yoga e festas inusitadas são pratos fortes do cardápio, além das atuações dos cabeças de cartaz Squarepusher, Electric Wizard e Os Tubarões. E se é verdade que muito do público que vai ao Milhões praticamente não conhece um único nome do alinhamento, é igualmente verdade que poucos são os que saem de lá insatisfeitos.

“Surpreendo-me sempre com o novo público, porque isto acaba por ser uma proposta bastante pessoal de quem programa e de quem faz parte da Lovers. Por isso, sempre que há uma nova geração no festival é muito positivo, deixa-me bastante satisfeito.”

Sobre o futuro, Joaquim Durães acredita que o festival caminhará para uma maior abertura à cidade e a novos espaços. “É uma ideia que nos tem deixado motivados e acho que muito do que será o Milhões passará pela busca de outras conceções. Não me refiro necessariamente à criação de novos palcos, mas mais a novas formas de apresentar os artistas e novos desafios que queremos pensar para o público.” Uma coisa é certa: o Milhões de Festa não desistirá de ser um laboratório de ideias e, pela amostra destes últimos onze anos, as experiências não vão ficar por aqui.

Toda a informação sobre a edição deste ano do festival Milhões de Festa aqui.