Jovens atores de quatro países europeus apresentam em Coimbra e Lisboa “Perigo Feliz”, um projeto encenado por Tiago Rodrigues, em que o gesto de traduzir é encarado como um ato com significado político, de abertura ao outro.

O espetáculo, em criação no contexto do projeto de formação europeu École des Maîtres, junta 16 jovens atores que vivem na Bélgica, Itália, França e Portugal, mas que representam mais nacionalidades e origens – “pelo menos metade são imigrantes ou filhos de imigrantes”, refere Tiago Rodrigues.

Num momento em que crescem movimentos de extrema-direita no continente, o encenador português, que dirige este ano o curso, procurou trabalhar a questão da língua e da pluralidade de culturas presentes na Europa, entendendo que o próprio ato de tradução tem um significado político por representar a abertura ao outro, a tentativa de comunicação com o outro.

“Um dos grandes perigos de um continente ou de um país monoglota é o fechamento sobre si próprio, é a defesa de uma espécie de pureza de linguística que por vezes corresponde a uma visão de pureza nacionalista perigosa. Aí, não de forma feliz”, disse à agência Lusa Tiago Rodrigues. Estando a trabalhar com atores de diversas nacionalidades e línguas, aquilo que poderia ser visto como um constrangimento acaba aqui por ser usado como “o cerne do trabalho”.

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“Como é que podemos usar a língua e fazer um teatro onde o texto e a escrita e a relação do ator com as palavras têm um lugar fundamental e a tradução ser um perigo feliz?”, vinca Tiago Rodrigues, encarando a tradução como um ato que dá azo ao perigo e ao equívoco, mas que ao mesmo tempo é feliz, “porque exige a invenção, exige esse esforço criativo de quem comunica”.

O grupo de 16 atores já apresentou o resultado da formação em Itália, sendo Portugal o segundo país a receber este curso itinerante, onde o espetáculo não tem “um minuto sequer” daquilo que foi apresentado em Roma e Udine, com a criação do texto a ser feita em conjunto entre encenador e atores.

Em Portugal, “Perigo Feliz” é apresentado na quinta-feira, no Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), e, no domingo, no Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa). A história centra-se em torno de 16 crianças que se deparam com um mocho ferido, a morrer, e que têm que decidir em conjunto o que é que deve ser feito. A primeira parte da apresentação é toda falada em português – seja por atores que o falam bem ou por aqueles que não dominam a língua – sendo depois faladas as outras línguas presentes no curso.

Na apresentação de “Perigo Feliz”, a questão da língua e da tradução poderá surgir por vezes de forma explícita ou implícita, refere Tiago Rodrigues. Mas o público pode encontrar “uma amostra de uma Europa que tem de ser reafirmada e acarinhada, que é a Europa poliglota, multiétnica, confusa, caótica, perigosa no sentido do tal perigo feliz”.

“É uma Europa que me interessa muito mais, que eu consigo defender face a uma outra Europa que talvez seja mais dominante hoje, mas menos interessante e menos feliz, que é uma Europa que quer fechar, que não quer receber, que quer ser monoglota”, afirma.

Nádia Yracema, jovem atriz angolana a viver em Portugal que participa no projeto, considera que o trabalho em torno da língua possibilita mais erros, mas também “uma maior liberdade”. Em palco, acaba por transparecer que se está perante “um conjunto de pessoas que vêm de sítios diferentes e que se encontram na tentativa de se fazerem entender. Acho que é muito importante mostrar que é possível, que não é uma barreira, mas uma oportunidade de criar laços”.

“É incrível quando vejo os colegas a tentar encontrar a palavra na sua mente. Esse esforço para se encontrar a palavra porque é preciso falar com o outro é especial”, nota Aleksandros Memetaj, ator a viver em Itália.

Para Tiago Rodrigues, em palco, será possível “olhar para estes 16 atores e estar-se em contacto com uma Europa que ainda se pode ter, uma Europa que ainda pode ser”.