Título: “Estar Vivo Aleija”
Autor: Ricardo Araújo Pereira
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 144
Preço: 15,90€

Em Estar Vivo Aleija, a compilação das crónicas que escreveu ao longo do último ano e meio para a Folha de São Paulo, Ricardo Araújo Pereira (RAP) descreve-se várias vezes como alguém que chegou para suprimir uma lacuna. Promete ser o primeiro a demonstrar a estreita ligação entre amor e batatas, afirma querer ser o estudioso das moscas que faltava ao Ocidente, declara-se o responsável principal por nos lembrar que defecamos. Mais do que a escrever uma boa piada, RAP está desta forma a procurar descrever o trabalho do humorista como o de olhar para o mundo de uma perspectiva nova. Uma perspectiva que se preocupa menos com o cosmos e mais com a maneira peculiar que os ricos têm de se rir.

Em muitos momentos, RAP sugere que a sua actividade é completamente ociosa e infrutífera, dando ao leitor a impressão de que o tempo que dedica à leitura dos seus textos é inutilmente gasto em simples trivialidades, ainda para mais “trivialidades que não iluminam nada. Que existem só para me irritar e me deixam permanecer na escuridão, sossegado” (p.33). Seria, no entanto, um erro acreditar naquilo que RAP diz, uma vez que o objectivo último de um bom humorista, tal como o de um bom mágico, é o de sistematicamente enganar o espectador. E, sob este ponto de vista, talvez o maior triunfo de RAP seja o de convencer o leitor que Estar Vivo Aleija é um livro escrito por um humorista quando, como se verá, não é esse o caso.

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Numa das mais famosas entradas do Diapsalmata, Kierkegaard conta a história de um incêndio que deflagrou nos bastidores de um teatro. O palhaço do teatro veio então em pânico alertar o público que, convencido de que se tratava de uma piada, aplaudiu e rejubilou. Kierkegaard conclui esta história dizendo: “É assim que eu penso que o mundo vai acabar, sob o júbilo geral das cabeças espirituosas”. RAP é o palhaço de Kierkegaard. Veste-se como um palhaço, mexe-se como um palhaço, mas, no meio do engodo, fala muito a sério. E nós rimo-nos a bandeiras despregadas.

RAP desvaloriza-se uma e outra vez enquanto escritor para que nós nos riamos do texto em que imagina a vida de um Karamazov brasileiro, sem que notemos na perfeição das duas primeiras frases (“Ivanildo desconfiou logo que se encontrava numa paródia. Não tinha memória de existir antes de 21 de Abril de 2017 e agora estava ali, numa página da Folha, mesmo por cima das tiras de BD”). Afirma-se a única pessoa inapta para começar frases inspiradoras por “aquele momento” para, de seguida, escrever um texto extraordinário em que todas as frases começam por essas duas palavras. Garante ser estúpido como os cães para que as nossas gargalhadas abafem o virtuosismo de “Sobre Cães e Gatos”. Pior do que tudo, jura ser um preguiçoso incurável enquanto lança dois livros por ano.

RAP deprecia então o seu valor para que nós, vendo apenas o palhaço, não vejamos o incêndio. No entanto, ao contrário do palhaço de Kierkegaard, o escritor não parece nunca querer salvar-nos do incêndio. RAP parece querer apenas que nós nos riamos do homem que anuncia a tragédia enquanto os nossos corpos são consumidos pelas chamas. Desde o primeiro artigo, RAP avisa os seus leitores de que o seu trabalho é pouco mais do que uma luta contra a morte (uma ideia que, aliás, já desenvolvera em A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar):

“Todas as semanas escreverei aqui sobre a vida, esse caminho de dor, angústia e desespero que culmina na morte. Serão textos humorísticos” (p.13).

Todavia, está ciente de que a batalha que decide lutar contra a temível ceifeira está condenada ao insucesso, uma vez que, quando a morte chegar, “estarei rodeado de uma circunspecção que sempre rejeitei em vida, e essa é a verdadeira derrota — uma que eu não merecia” (p.21).

Esta derrota inevitável diante da morte não é, evidentemente, propriedade exclusiva do auto-denominado humorista.  De acordo com RAP, ser humano é estar sempre num equilíbrio muito pouco estável entre animal e Deus, o que nos condena à vergonha e ao embaraço de, sendo nós pouco mais do que um macaco, nos julgarmos omnipotentes. RAP não é evidentemente o primeiro a descobrir esta ideia que podemos traçar pelo menos até à Grécia Antiga. Ainda assim, o amor que RAP é capaz de sentir pela humanidade nunca advém do seu lado divino, mas antes das vezes em que falhamos, das vezes em que somos ridículos. Mais do que a beleza dos gestos grandiosos e altruístas, RAP ama as pessoas que usam expressões como “a pessoa humana”. Mais do que a virtude, ama as fezes. Sob este ponto de vista, aproxima-se de Sabino, a personagem de Nelson Rodrigues que amava o pai não quando o lembrava solene e bem-falante, mas apenas quando lhe vinha à cabeça a recordação de que este morrera a defecar.