Era um desfecho anunciado: Paulo Gonçalves está de saída do Benfica. O clube encarnado confirmou, esta segunda-feira, no site oficial, a saída do assessor jurídico envolvido na investigação do caso e-toupeira, alegando que foi o próprio a solicitar a cessação das suas funções.

“Na base da proposta do Dr. Paulo Gonçalves estão razões de natureza pessoal, em especial a necessidade de se dedicar à sua defesa num processo judicial, em nada relacionado com o exercício de funções que lhe estavam confiadas na Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, explicou o clube da Luz em comunicado.

Já em março, quando foi detido e constituído arguido no processo e-toupeira, o advogado terá colocado o seu lugar à disposição, mas Luís Filipe Vieira recusou o pedido, com o clube a assegurar, em comunicado, manter “integral confiança” no advogado — naquela que seria uma decisão unânime por parte dos elementos da SAD. Mas, desta vez, o presidente do Benfica deixou mesmo cair um dos homens fortes do futebol encarnado — confirmando o desfecho que há muito se previa nos corredores do Estádio da Luz.

Na mesma nota publicada no site, o Benfica agradece ainda o desempenho do assessor jurídico e “reconhece o profissionalismo, a lealdade, a integridade e a dedicação demonstrados ao longo de 12 épocas desportivas e até hoje”.

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Dos emails ao e-toupeira

O envolvimento de Paulo Gonçalves com a justiça começou no final de 2017 quando, na sequência de buscas efetuadas ao Estádio da Luz, foi constituído arguido no caso dos emails — em que o Benfica e os seus dirigentes são investigados por corrupção desportiva, num alegado esquema com árbitros e observadores.

Em causa estava uma teia de relações denunciada, pela primeira vez, pelo Porto Canal e que envolvia, por exemplo, Adão Mendes, ex-árbitro e ex-vice presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Braga, Pedro Guerra, ex-diretor de conteúdos da Benfica TV, mas também Nuno Cabral, ex-árbitro e ex-delegado da Liga e Ferreira Nunes, ex-vice presidente do Conselho de Arbitragem, responsável pelas classificações dos árbitros. O alegado esquema envolveria a troca de bilhetes entre elementos da Federação Portuguesa de Futebol e do Benfica e relatórios de arbitragem condicionados, estando Paulo Gonçalves no centro dessa teia de corrupção.

Mas tudo pioraria para o então assessor jurídico dos encarnados quando, a 6 de março, foi detido no âmbito do processo e-toupeira — que investiga a existência de um alegado espião que estaria a passar informação para o Benfica sobre processos nos quais o clube está a ser implicado. Em causa estavam pedidos de Paulo Gonçalves para que lhe fossem fornecidos processos ligados ao caso dos emails — para que pudesse acompanhar todo o trabalho que estava a ser feito pela Justiça no caso de corrupção ligado à arbitragem. Mas há mais: para além de, alegadamente, os oficiais de justiça terem aceite os subornos, também terão enviado a Paulo Gonçalves documentos de processos em que estavam envolvidos dirigentes dos rivais Sporting e FC Porto.

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O caso teve desenvolvimentos em setembro deste ano, quando Paulo Gonçalves foi formalmente acusado de 79 crimes, juntamente com dois funcionários judiciais e com a SAD do Benfica, acusada de 30 crimes. “No essencial ficou suficientemente indiciado que os arguidos com a qualidade de funcionários de justiça, pelo menos desde Março de 2017, acederam a processos-crime pendentes no DIAP de Lisboa e do Porto e em outros tribunais, transmitindo as informações relevantes ao arguido colaborador da SAD, fazendo-o de acordo com a solicitação do mesmo e em benefício da mesma sociedade”, lê-se no comunicado publicado pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa a 4 de setembro.

O Benfica ainda defendeu publicamente Paulo Gonçalves numa conferência de imprensa de Varandas Fernandes, vice-presidente encarnado. “O Dr. Paulo Gonçalves é funcionário do Benfica e a situação até ao momento não se alterou. Reconhecemos competência, dedicação e profissionalismo, tem estes três atributos. Mais nada tenho a dizer sobre esta matéria”, esclareceu, na altura, sublinhando que o advogado estava apenas acusado e não julgado. Ainda assim, a corda, que já estava esticada, acabou mesmo por rebentar levando à queda de um dos homens fortes da estrutura de Luís Filipe Vieira.

A ascensão e a queda

Foi em dezembro de 2006 que começou o trajeto de Paulo Gonçalves no Benfica — estava José Veiga de saída do clube encarnado. Foi, aliás, o então diretor geral da SAD encarnada que lhe abriu as portas da Luz: ambos já se conheciam desde o tempo em que ambos tinham relações privilegiadas com outro ‘grande’ de Portugal, o FC Porto.

Foi Alexandre Pinto da Costa, filho do histórico dirigente dos dragões (e com o qual Veiga tinha fundado a empresa de agenciamento de jogadores Superfute, que chegou a representar Cristiano Ronaldo e Luís Figo), que promoveu o contacto entre os dois. Paulo Gonçalves, licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto em 1994, era próximo de Alexandre Pinto da Costa desde o tempo em que integrava a sociedade de advogados Graça Moura, diretamente implicada na constituição da SAD portista em 1997.

Mas a relação de Paulo Gonçalves com o clube da Invicta não durou muito: em 1999, nasceu o conflito entre Alexandre Pinto da Costa e o pai e todos aqueles que eram próximos do filho passaram a ‘personas non gratas’ no Dragão. Paulo Gonçalves estava no rol.

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Mas o caminho no desporto estava traçado. Voltou à Universidade para fazer uma pós-graduação em Direito da Comunicação e, mais tarde, especializou-se em Direito Desportivo. Foi um salto até se mudar para outro clube portuense — agora o Boavista. O advogado foi convidado por João Loureiro (uma vez mais por influência de José Veiga) para integrar a SAD axadrezada, que dava os primeiros passos. E assim se tornou diretor geral do clube entre 2000 e 2006 — num período em que o Boavista foi, inclusive, campeão nacional.

O sucesso futebolístico não rimou com a prosperidade do clube, que se viu envolvido, em 2004, no processo Apito Dourado — na sequência do qual viria a descer de divisão. Terminava o trajeto de Gonçalves nos axadrezados — mas, uma vez mais, não no futebol. Passou a ser apontado como candidato a secretário geral da Liga, então presidida por Valentim Loureiro, e, mais tarde, terá sido convidado por Hermínio Loureiro para diretor executivo da Liga caso a sua lista vencesse — o que veio a acontecer. Mas não a entrada de Gonçalves para o organismo. É que, na altura, começaram a correr os primeiros rumores da ligação do advogado aos encarnados e o FC Porto meteu-se ao barulho. Alegou o clube portista que o Paulo Gonçalves era escolha de Luís Filipe Vieira para o cargo.

O presidente encarnado veio a negar publicamente ter exigido Gonçalves na Liga e disse mesmo que, se o nome do advogado entrasse, novamente, na rota do emblema da Luz, contaria “a verdade toda”. Mas a história veio a escrever-se noutra direção. Semanas depois, Paulo Gonçalves entra para assessor jurídico da SAD do Benfica, ficando com uma das suas principais pastas: as transferências e contratos dos jogadores.

Com o tempo, a sua esfera de ação cresceu e tornou-se um dos homens fortes de Luís Filipe Vieira, com privilégios de se sentar nas reuniões do Conselho de Administração da sociedade desportiva, representando o clube nas Assembleias Gerais da Liga e negociando jogadores diretamente. Uma ascensão meteórica que conheceu a queda esta segunda-feira.