O primeiro dia de Santa Casa Alfama não podia ter começado mais lisboeta: quando a estrela da tarde já subia aos céus, Marco Rodrigues entrou em palco para cantar  “Lisboa, Menina e Moça” porque “podia começar o concerto de várias maneiras”, mas aquela pareceu-lhe “fazer todo o sentido”. Era pôr do sol, o calor ainda apertava, mas a brisa que vinha do Tejo aliviava os primeiros momentos do festival do fado por excelência, que esta sexta-feira se estreou com o primeiro espetáculo alguma vez realizado no terraço do novo Terminal de Cruzeiros de Lisboa. E apesar de os espetáculos terem dado os primeiros acordes tão à portuguesa, cedo se chegaria à conclusão de que, naquela noite, Alfama não seria só do fado. E o fado que por ali se ouviria nem sempre seria triste, nem sempre muito português.

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Na edição de 2017, Marco Rodrigues levou Boss AC com ele e juntos cantaram “Homem do Saldanha”, uma homenagem ao Senhor do Adeus escrita pelo rapper com Carlos do Carmo.

Dizia Amália Rodrigues, cantando Ary dos Santos, que “Alfama não cheira a fado”, mas a primeira noite do Santa Casa Alfama haveria de provar que tem mesmo “outra canção”. Marco Rodrigues foi o primeiro a prová-lo quando, entre a “Rosinha dos Limões” e o “Fado do Cobarde”, levou Diogo Piçarra para partilhar com ele o protagonismo de cantar “O Tempo” — uma canção cantada pelo primeiro, mas composta pelo segundo. A seguir ao abraço que os dois deram no final da música, Diogo Piçarra explicou porque é que tinha aceite participar naquele momento: “Aceito sempre o teu convite porque tenho sempre esperanças que me devolvas esta música. Mas hoje chegámos a bom porto”. E, neste caso, chegaram literalmente.

Marco Rodrigues e Diogo Piçarra cantam “O Tempo” no Terraço do Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR.

Quando virámos costas a Marco Rodrigues, ele estava a terminar de cantar “Copo Meio Cheio”, uma canção feita por Marisa Liz, para depois interpretar “Não Podia Estar Melhor”, de Boss AC. Tanto essas duas músicas como “O Tempo” de Diogo Piçarra fazem parte do último álbum de Marco Rodrigues: “Este meu último álbum não é de fado. Convidei artistas fora deste ambiente para produzir canções para mim”, explicou ele, enquanto endireitava o cabelo que insistia em ganhar vida própria com o sopro do vento. Marco Rodrigues até brincou: “Para a próxima tenho de cortar o cabelo, senão isto não é fado. É punk”.

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Mas ali mesmo no Santa Casa Alfama, um artista provaria umas horas mais tarde que uma coisa não invalida necessariamente a outra. Longos anos — onze, mais propriamente — depois de se ter afastado na indústria musical portuguesa, Paulo Bragança deu um concerto no mais antigo bairro típico de Lisboa e provou que essa antagonia não existe. O artista natural de Luanda, capital de Angola, apresentou-se no Centro Cultural Dr. Magalhães Lima com um macacão pintado com tintas cor de laranja fluorescente, o cabelo loiro desgrenhado e com rastas, rosto coberto por tinta branca e círculos pretos à volta dos olhos. Um cenário que contrastava com o quadro de Sebastião de Magalhães Lima atrás dele.

Paulo Bragança: “Durante seis anos, nem a família sabia onde eu estava”

Paulo Bragança disse estar feliz por estar de volta: “Há uns anos, a Rosa Lobato Faria escreveu para mim uma canção que até parecia profética. Dizia que o tempo não voltava para trás. Eu andei 11 anos à esperasse que ele voltasse. E cá estou! Ainda bem que cá estou”. E lá cantou “O Tempo Não Volta”. Do reportório constou ainda “É Lisboa a Namorar”, outra composição de Rosa Lobato Faria com Mário Pacheco, e “Soldado” dos Sitiados, que mereceu muitos aplausos do público. Pelo meio, com um xaile coberto de losangos aos ombros, Paulo Bragança cantou Amália Rodrigues: “Que destino ou maldição manda em nós, meu coração? Um do outro assim perdido, somos dois gritos calados, dois fados desencontrados, dois amantes desunidos”.

Paulo Bragança atua do Centro Cultural Dr. Magalhães Lima. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Há algo que Paulo Bragança e Maria Emília têm em comum: são os dois fadistas, mas nenhum deles nasceu em Portugal. Se o primeiro nasceu em Angola, Maria Emília nasceu em São Paulo, no Brasil. Segundo a biografia disponibilizada na página do Santa Casa Alfama, “muito jovem partiu para o Minho e aí teve o primeiro contacto com o fado acompanhando o pai, guitarrista”. Ainda voltou para o outro lado do Atlântico, mas regressou e fez do fado profissão. No concerto que deu — e que abriu o palco principal do festival — Maria Emília mostrou como une o fado, que a cultura portuguesa diz triste de genética, com a alegria das raízes brasileiras.

“Casa de Fado”, um dos maiores êxitos da artista luso-brasileira, diz: “E sem o fado tudo me sai mal, pior nem o Brasil sem carnaval”. Quando ela o canta junto ao Terminal de Cruzeiros, há quem a acompanhe a traulitar. E depois nunca mais se canta música cabisbaixa por ali: “Para todos aqueles que acham que o fado é triste, vamos tornar isto alegre. É que isto não é alegre de há dez anos para cá. É há muitos anos”, sublinha Maria Emília, enquanto estala os dedos e antes de interpretar “O Fado Desta Idade” de Beatriz da Conceição. A seguir ainda cantou “É Mentira” de João de Vasconcelos, o “Fado de Outrora” de Maria Teresa de Noronha e “Cheira a Lisboa” de César Oliveira.

Maria Emília no Santa Casa Alfama. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Quem também concorda com essa alegria que o fado pode ter é Paulo de Carvalho. Num concerto de arrancar gargalhadas — e lágrimas também, de vez em quando — Paulo de Carvalho deu uma lição a quem acha que o fado é necessariamente sobre desgraça: “Muita gente tem muito essa mania de achar que os portugueses são muitos choramingões, que andamos sempre de lágrima no canto do olho. Só por causa disso, vou provar que isso não é verdade”, anunciou. Para tal interpretou “O Polidor de Calçadas”: “O Joaquim Cordeiro, que não vos deve dizer nada, tinha umas letras de cuidado-com-o-cão. E esta canção fala de um rapaz a quem não dava muito jeito trabalhar”.

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Cinco dos artistas no primeiro dia de Santa Casa Alfama já estiveram no Festival RTP da Canção: Peu Madureira esteve na edição de 2018 e ficou em terceiro lugar, Filipa Cardoso foi a sexta classificada em 2007 , Paulo Bragança esteve lá em 1993, Dulce Pontes representou Portugal na Eurovisão de 1991 e Paulo de Carvalho (que tinha negado a participação em 1972) entrou no Festival em 1973, venceu um ano depois, voltou em 1975 e venceu uma vez mais em 1977.

O público pareceu agradado: era um fado malandro sobre um rapaz que responde ao pai que “se puder escolher, queria ser reformado”. E como as criações de Joaquim Cordeiro divertiam os ouvintes, Paulo de Carvalho aproveitou a onda e cantou a história do Chico Sapateiro, um fado que, em termos musicais, é de Sevilha: “Foi um caso bem falado quando o Chico sapateiro, após um treino apurado, pôs os chanatos de lado e se estreou como toureiro”, começa ele por cantar. Já depois da tourada, Paulo de Carvalho pede calma aos músicos que o acompanhavam: “Espera aí que o Chico precisa de descansar que ele levou um tareião. Ele punha as mãos nas costas — diz quem viu, que eu não estava lá — e disse: ‘Aquele bicho matreiro lá tinha as suas razões. Pus o capote encarnado por não saber que o malvado torcia pelos leões’“.

Foram tantas as reações quando o futebolês veio à baila que Paulo de Carvalho teve de explicar: “Sabem, quando este fado foi feito, o Futebol Clube do Porto andava assim vai-que-não-vai, de maneira que o principal adversário do Benfica era mesmo o Sporting. Mas depois achei que fazia todo o sentir falar do Porto e por isso agora repito o último verso. Para agradar a todos, que cada um é do seu”. E lá terminou o futebolês substituindo a palavra por “leões” por “dragões”, para alegria de um bom pedaço do público.

Paulo de Carvalho terminou o espetáculo com sonoridades além-fronteiras: primeiro cantou em crioulo de Cabo Verde, depois fez uma referência à história angolana. Sobre as primeiras, disse: “Muita gente acha que a morna tem muito a ver com fado. Eu sou uma dessas pessoas. Por isso vou prestar homenagem a dois cabo-verdianos que cantaram mornas que podiam ser fados”. E cantou “Sodade” de Tito Paris e Cesária Évora. A seguir, e a capella, cantou “Mãe-Negra”, um poema da poeta angolana Alda Lara. E por fim terminou a viagem musical internacional com “Meninos do Huambo”, uma canção que levantou muita comoção.

Paulo de Carvalho no palco principal do Santa Casa Alfama. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Enquanto Paulo de Carvalho atuava junto ao Tejo, um nome enchia a Igreja de São Miguel, meia hora antes de o espetáculo sequer ter conhecido. Era Peu Madureira, que até arregalou os olhos de espanto quando viu o espaço composto para o ouvir cantar desde Amália Rodrigues a Maria Teresa de Noronha. O entusiasmo era tão grande para o receber que havia quem lutasse por um lugar nas laterais da igreja, quem arrastasse bancos na esperança de descansar as pernas e quem, pelo sim pelo não, tivesse trazido cadeiras de praia para garantir o conforto: “Estou muito feliz por receber tanta gente na casa de Deus para nos ouvir tocar e cantar”, diz Peu Madureira.

Meio ano depois de ter participado no Festival da Canção e de ter conquistado o terceiro lugar, Peu Madureira apresentou-se perante um público que o acompanhava baixinho nos fados, enquanto abanava os leques para afastar o calor que se acumulava dentro da Igreja. Primeiro cantou Amália Rodrigues: “Como disserem das minhas, as penas das avezinhas de leves levam ao ar! As minhas pesam-me tanto que às vezes já nem o pranto lhes alivia o pesar“. Depois, para recordar a infância, cantou Maria Teresa de Noronha: “A saudade é como a luz que o sol já morto deixou. É presença, embora cruz, na alma de quem ficou“. E a seguir interpretou “Sem Carinho”, mas com um pedido de desculpas: “Quando estou a passear em Lisboa, vou sempre a cantar. Eu não consigo estar calado. Mas com ‘Sem Carinho’ tenho de vos pedir desculpa porque parece paradoxal cantar algo sobre quem não tem carinho quando tenho toda esta gente à minha espera”.

Peu Madureira na Igreja de São Miguel. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

A noite terminou com a atuação de Dulce Pontes. Em entrevista ao Observador, a artista portuguesa avisou que o concerto no Santa Casa Alfama não seria composto apenas de fado: “A estrutura com que o concerto está montado está com base ainda no último álbum, o Peregrinação. Claro que podemos acrescentar alguns fados. E eu quero, faço questão até. Mas não vai ser um concerto de fados. De resto, é corresponder ao máximo àquele ambiente de viagem que eu gosto de criar em cada concerto que faço. Cada um é único, mas só fado não vai ser”. E não foi mesmo. Mas “Canção do Mar” não falhou. E nunca se pediram tantas “Lágrimas” sem as conseguirem.

Dulce Pontes: “A diferença que fiz no fado podia ter sido um suicídio artístico brutal “

O concerto de Dulce Pontes começou com ela ao piano. Primeiro, a artista portuguesa mostrou a extensão vocal que Maria do Rosário Coelho lhe ensinou ao interpretar “A Minha Barquinha”, lançada em 1999 no álbum O Primeiro Canto. Depois, Dulce Pontes cantou “Grito” de Amália Rodrigues. A seguir, cantou “Senhora do Almortão”, uma letra de Zeca Afonso. E por fim intepretou “A Mulher da Roda”: “Esta roda está parada, ai, por falta de tocador. Ai, a roda já pode seguir, Ai, que a toca o meu amor“. É que, embora nem sempre tenha cantado fados, Dulce Pontes não fugiu à música popular portuguesa: protagonizou um bailarico “que cansa uma pessoa” ao som de “Salta Menininha” e cantou “Lauridinha Vem à Janela”. Mas também não fugiu às inspirações da música popular espanhola ao cantar “Folcore”, do álbum de 2006 O Coração Tem Très Portas.

Como não podia deixar de ser, “Canção do Mar” foi reconhecida aos primeiros sopros do flautista e até os primeiros versos da música foram cantados pelo público. Mas houve outros dois momentos que marcaram o concerto de Dulce Pontes em Portugal: um deles foi o solo do especialista em flamengo Daniel Casares, que demonstrou no Santa Casa Alfama ser capaz de dedilhar a viola com uma velocidade difícil de acompanhar; e o outro foi aquele em que Dulce Pontes tirou o lenço, atou guizos aos tornozelos e atou uma faixa de tecido abaixo da anca para lhe desvendar os pés. E o momento foi entusiasmante porque foi assim que a cantora demonstrou que ainda lhe corre no sangue o gosto pela dança contemporânea que marca o início da sua carreira nos anos 80: “Isto é para dançar até fazer faísca”, anunciou. Estava feita a viagem que Dulce Pontes tinha prometido.

Dulce Pontes interpreta “A Minha Barquinha”. Créditos: KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

O Santa Casa Alfama regressa no sábado, 29 de setembro, para o último dia do festival. Raquel Tavares, Alexandra e António Pinto Basto vão estar no Palco Santa Casa para os principais concertos do dia. O cartaz também anuncia a guitarrista Marta Pereira da Costa no Museu do Fado, Maria da Fé no terraço do Terminal de Cruzeiros, João Pedro Pais no Palco EDP e Maria Amélia Proença do Palco Amália. Mas não haverá apenas nomes consagrados: o último dia também leva ao bairro lisboeta Beatriz Felício e José Geadas — dois artistas com menos de 20 anos que são, para muitos, o futuro do fado.