A confirmação de que Cristiano Ronaldo ia trocar o Real Madrid pela Juventus já data de meados de julho, mas a história completa sobre a polémica saída do jogador do clube onde esteve quase uma década está longe de estar esclarecida. Este domingo, contudo, o jornal El Mundo publica uma crónica onde divulga muitos pormenores até aqui desconhecidos — desde o facto de Ronaldo pensar que o presidente do Real, Florentino Perez, o ia salvar dos problemas com o fisco espanhol (tal como o Barcelona tinha ajudado Messi), ao facto de não lhe agradar que Messi e Neymar ganhassem mais do que ele, passando pelas reuniões acesas na casa de Jorge Mendes.

Uma coisa é certa: Ronaldo queria há muito sair do Real Madrid, mas não aceitou a primeira oferta que lhe foi feita: recusou o Milan, recusou o Manchester United de Mourinho, recusou o PSG. Até o Nápoles tentou. Mas Cristiano só viria mesmo a aceitar a proposta da Juventus, que nem foi a mais alta (ao contrário do que Florentino Perez tinha dito).

O extenso artigo do El Mundo confirma agora que a gota de água para a saída do jogador de Madrid foi o diferendo que teve com o fisco espanhol — que o acusou de crimes fiscais relacionados com direitos de imagem, cometidos entre 2011 e 2014. As acusações de fuga ao fisco motivaram várias reuniões de Ronaldo com a sua entourage, onde o jogador admitia não ter estudos e exigia explicações aos seus advogados e conselheiros — era, na verdade, para evitar este tipo de problemas que Ronaldo lhes pagava mais 30% do valor que era suposto, dizia o próprio.

Uma dessas reuniões é detalhada no artigo: aconteceu no dia 11 de maio de 2017, na casa do empresário Jorge Mendes, que morava na vizinhança da casa de Ronaldo. O jogador mandou chamar todas as pessoas da sua confiança para apurar um culpado. Queria saber quem era o responsável pelos problemas fiscais de que estava a ser alvo e que estavam a manchar a sua imagem, pondo-lhe o selo de “criminoso”. “Não tenho estudos, a única coisa que sei fazer é jogar futebol, mas não sou burro e não confio em ninguém. É por isso que, quando contrato alguém, lhe pago sempre mais 30% do que ele pede, porque não quero problemas”, praguejava Ronaldo. Segundo o El Mundo, Ronaldo pagava, por exemplo, 25 mil euros por mês a um motorista, porque prezava muito a sua privacidade.

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Na reunião estaria Carlos Osório, advogado responsável pelas questões fiscais do jogador, que admitiu ali mesmo que a responsabilidade era sua e disse que ia “lutar até à morte” para remediar os estragos. “Doutor, eu disse que não queria riscos!“, dizia Cristiano ao advogado, homem de confiança do empresário Jorge Mendes, que é uma das pessoas a quem pagaria acima do previsto para garantir que tinha o melhor serviço prestado, livre de riscos e problemas. O advogado, contudo, nega ter assumido a culpa pelos problemas fiscais do jogador na dita reunião.

Num e-mail enviado ao Observador no seguimento da publicação da notícia, o advogado Carlos Osório afirma que, “embora seja advogado do Cristiano Ronaldo”, não é o especialista fiscal. “Nunca nem eu nem a sociedade de advogados que integro prestámos ao Cristiano Ronaldo qualquer tipo de aconselhamento em matérias fiscais fora de Portugal. Todas as declarações fiscais do Cristiano Ronaldo em Espanha foram preparadas e apresentadas por assessores fiscais locais de elevado prestígio, sem a minha intervenção”, disse.

Mais: no mesmo email, o advogado nega ter feito as declarações citadas na referida reunião. “Na citada reunião, o que se disse efetivamente, e pelos novos assessores espanhóis presentes, diferentes dos que tinham elaborado as declarações fiscais, foi que a responsabilidade cabia inteiramente à própria Autoridade Tributária espanhola, a qual baseava as suas acusações em meras divergências técnicas, sustentando para o efeito critérios que os ditos assessores consideravam totalmente erróneos — opinião que, aliás, mantiveram até final, apenas tendo recomendado a aceitação de um pacto por não poderem excluir em absoluto o risco de prisão efetiva”.

Em todo o caso, esse dia 11 de maio de 2017 é visto, agora, como o primeiro dia do fim da sua carreira no Real Madrid, só consumado um ano depois, a 11 de julho de 2018 — já depois de Cristiano ter pago quase 19 milhões de euros ao Estado espanhol, num acordo em que reconheceu os delitos fiscais. É que, ao mesmo tempo que Ronaldo não queria ter mergulhado naquele conflito fiscal, também esperava que o presidente do clube, Florentino Perez, fizesse alguma coisa para lhe salvar a pele, tal como a direção do Barcelona tinha ajudado Messi num problema semelhante. Segundo o El Mundo, Ronaldo tinha a esperança de que, pelo menos, a direção do Real lhe aumentasse o salário para compensar a perda dos 19 milhões que teria de pagar ao fisco. Acontece que Florentino Perez não fez isso e o jogador acabou por ser empurrado para o terceiro lugar da lista dos mais bem pagos do mundo, ultrapassado pela renovação do contrato de Messi no clube rival e pela ida de Neymar para o PSG.

Mais: Ronaldo nunca achou que o Real Madrid, mesmo depois de nove anos a jogar ali e a conquistar os mais variados troféus, o considerasse o melhor jogador de sempre da casa. “Põem-me sempre atrás do Di Stéfano“, dizia aos seus mais próximos. A vontade de sair, portanto, já era muita. Mas o caminho até à Juventus também foi atribulado — com Ronaldo a recusar mais convites do que aqueles que chegaram a ser noticiados.

Segundo conta aquele jornal, a única condição que Florentino Perez impôs para libertar o jogador foram 100 milhões: “Traz-me os 100 milhões e ele é livre”, dizia Florentino para o empresário Jorge Mendes. Assim foi, depois era só Ronaldo escolher o destino.

Primeiro, foi o Milan. O clube italiano avançou com 150 milhões de euros (bem mais do que os 100 estipulados), mas o português recusou por achar que o clube não tinha estado no seu melhor nos últimos anos, sem ganhar campeonatos. Seguiram-se os ingleses do Manchester United, onde já tinha sido feliz, mas a proposta não era suficientemente apelativa em termos financeiros. Veio depois o PSG, mas as negociações tinham um revés: o clube francês queria que a transferência só se concretizasse no último dia do mercado para evitar que o clube de Madrid contra-atacasse indo buscar Neymar ou Mbappé. Pelo meio ainda houve contactos do Nápoles.

Veio finalmente a proposta da Juventus, de Turim, que tinha sido, de resto, uma preferência já manifestada pelo próprio Ronaldo a Jorge Mendes. “É um clube organizado e não me esqueço que me tentaram ir buscar quando eu estava no Sporting”, dizia o jogador português, em dezembro, ao empresário. “A Juve chegou a duas finais da Champions nos últimos anos, comigo pode ganhar”, dizia Ronaldo.

O tiro de partida das conversações entre Agnelli, presidente do clube italiano, e Jorge Mendes, acabou por ser, contudo, o dia em que Ronaldo marcou um golo contra a Juventus nos quartos-de-final da Liga dos Campeões aplaudido entusiasticamente pelos adeptos italianos em Turim. A partir daí, tudo se desenrolou — e não foi por uma questão de dinheiro. “Dei a minha palavra a quem me valorizou quando o Real Madrid não o fez. Se o Florentino vem agora e me dá o dobro do dinheiro, eu não me importo. Eu vou para a Juventus”, dizia Ronaldo.

E foi, aos 33 anos. “Agora o Florentino vai ver do que sou capaz”.

*artigo atualizado às 20h20 com esclarecimento do advogado Carlos Osório, que nega partes do relato feito na crónica do El Mundo.