Charles Aznavour morreu na noite deste domingo, 30 de setembro, para a manhã desta segunda-feira, 1 de outubro, aos 94 anos. Referência incontornável da música francesa, também com uma carreira paralela como ator, Charles Aznavour atuou pela última vez em Portugal há dois anos, na Altice Arena, em Lisboa. Morreu este fim de semana em sua casa, no sul de França, onde se encontrava depois de regressar de uma digressão no Japão. Este verão, tinha sido obrigado a cancelar atuações devido a um braço partido, resultante de uma queda.

Ao longo da duradoura carreira musical, Charles Aznavour gravou mais de mil canções em sete línguas diferentes, refere o jornal francês Le Figaro. Atuou em 94 países e vendeu mais de 100 milhões de discos, tendo participado como ator em mais de 60 filmes, entre os quais “Disparem Sobre o Pianista”, do grande realizador francês François Truffaut.

Tendo mantido ao longo da vida reservas sobre a sua vida pessoal, Aznavour deixou seis filhos. Casou-se por três vezes, mas o último casamento foi, de longe, o mais duradouro: estava casado com Ulla Thorsell, com quem teve três filhos, há 50 anos.

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A carreira precoce e a (difícil) ascensão

Filho de imigrantes arménios, Charles herdou do pai, Michael Aznavourian, o talento para o canto. Aznavourian cantava em restaurantes franceses para ganhar a vida e Charles Aznavour cedo seguiu as pisadas do progenitor: com apenas nove anos deixou a escola e começou a cantar e tocar violino com regularidade pelas ruas. Tinha acabado de atingir a maioridade quando a grande voz feminina da canção francesa, Édith Piaf, o ouviu. Piaf demorou pouco tempo a levar Aznavour consigo em digressão durante dois anos, para um conjunto alargado de concertos em França e nos Estados Unidos da América. Pouco antes, Charles Aznavour tinha-se lançado num duo musical com o compositor de jazz Pierre Roche.

A sombra de Édith Piaf, contudo, atrasou a afirmação de Charles Aznavour como cantor. Refere o Le Figaro que, durante vários anos, Aznavour era na maior parte do tempo motorista, telefonista e técnico de som e luzes. Ocasionalmente, era chamado a palco por Piaf para apresentar uma ou outra canção original que tivesse escrito, quase sempre sem grande impacto. Tanto assim era que Aznavour terá ouvido de Piaf que dificilmente se tornaria um cantor de referência.

Foi já depois de ter ultrapassado os 30 anos que Charles Aznavour se aproximou do estrelato. 1955 e 1956 foram anos decisivos para a ascensão de Aznavour: no primeiro, gravou “Parce que” e “Viens au creux de mon épaule”, entre outras canções, mas sofreu também um grave acidente de carro, que o deixou vários meses fora dos palcos. Em 1956, o regresso deu-se com pompa e circunstância, com a gravação do seu primeiro grande êxito nacional, “Sur Ma Vie” — o primeiro tema a ascender à liderança dos singles mais ouvidos em França — e com a primeira atuação na emblemática sala de concertos francesa Olympia.

França, contudo, ainda não estava conquistada: as críticas ao regresso do cantor depois desse grave acidente foram negativos, com a voz e registo musical de Charles Aznavour a serem colocados em causa apesar da popularidade do cantor. Um concerto em 1960, na reputada sala de concertos Alhambra, tornou-se quase mítico por ter iniciado a aclamação de Aznavour em França e, posteriormente, em todo o mundo.

Mais, aliás, do que o concerto no Alhambra, o que virou o jogo foi uma canção aí cantada. “Je m’voyais déjà”, sexto tema a ser interpretado por Charles Aznavour nesse concerto, deu ao cantor a aclamação definitiva, com (rezam as crónicas de então) o público rendido e a aplaudir vigorosamente. Quem esteve presente nesse espetáculo dificilmente terá esquecido os versos dessa canção, em que Aznavour lamentava as más críticas mas já profetizava o sucesso:

“D’autres ont réussi avec un peu de voix mais beaucoup d’argent

Moi j’étais trop pur ou trop en avance

Mais un jour viendra je leur montrerai que j’ai du talent”.

Aznavour: a prova do tempo que passa

Entre as centenas de canções posteriormente editadas por Charles Aznavour estão alguns dos seus êxitos internacionais: “La Mamma” (1960) “Les Comédiens” (1962), “La Bohème” (1965), “Emmenez-moi” (1968), “Désormais” (1969), “Mes Emmerdes” (1976), “Toi et Moi” (1994).

“Comme ils disent”, editada como single em 1972, foi marcante por outros motivos: foi um dos primeiros temas dedicados à comunidade homossexual e LGBT, à época ainda um tabu na música popular, que começara a ser discutido mais regularmente na sociedade civil em França na sequência do movimento e levantamento estético, político e cultural do maio de 1968. As referências à comunidade drag queen em França também eram claras, ainda que não autobiográficas: “Mais mon vrai métier, c’est la nuit / que je l’exerce en travesti: je suis artiste”, cantava Aznavour.

Também “Pour toi Arménie” foi um marco na carreira de Charles Aznavour, mas por motivos diferentes. A canção, para a qual Aznavour convocou alguns dos seus pares músicos e atores (por exemplo, Jane Birkin, o músico Johnny Hallyday e a luso-francesa Linda de Suza), era dedicada às vítimas de um terramoto trágico em solo arménio, país em que nasceram os pais de Aznavour, no ano de 1988. O terramoto tinha causado entre 25 mil a 50 mil mortos. Editado como single no ano seguinte, “Pour toi Arménie” vendeu mais de um milhão de cópias. O dinheiro reverteu para as vítimas.

Entre várias digressões de despedida dos palcos e promessas de reforma, Charles Aznavour manteve-se ativo quase até ao fim da vida. Nos últimos dois anos, os concertos foram mais esporádicos, mas ainda em março deste ano Aznavour deu um concerto na sala de espetáculos AFAS Live, em Amesterdão. Em Portugal, o último concerto foi dado há dois anos, no antigo Pavilhão Atlântico, onde tinha atuado há dez anos (em 2008). Portugal foi aliás o primeiro país não francófono a recebê-lo como cantor, como recordou nesse último espetáculo em Lisboa. O último álbum de estúdio editado por Charles Aznavour remonta a 2015. Intitulado Encores, inclui um dueto com o cantor Benjamin Clementine.

Uma “amizade amorosa” com Amália

O cantor francês foi próximo de Amália Rodrigues, que o conheceu pela primeira vez na Bélgica, num dia em que os dois cantaram no mesmo espaço: Aznavour no auditório mais pequeno de um teatro belga, Amália Rodrigues na sala maior. A relação estreitou-se logo ali, quando os dois começaram a conversar sobre fado, género musical de que Aznavour era fã e em que o francês identificava algo da sua forma de cantar.

Com a fadista portuguesa, o cantor teve teve uma “amizade amorosa” mas não “sexual”, como referiu em entrevista ao semanário Expresso. Aznavour escreveu inclusivamente uma canção para a grande diva do fado, “Ay, Mourir Pour Toi”, e considerava Amália uma intérprete com um estatuto e grandeza semelhantes ao de Édith Piaf.

Artigo atualizado às 13h29, com precisão sobre o nome do jornal francês Le Figaro (e não Le Firago, como se encontrava escrito) e com duas correções ortográficas, após chamada de atenção de uma leitora