A incomunicabilidade, a impossibilidade de concretizar o amor e o medo de existir enquadram a ação de “A fera na selva”, peça de Marguerite Duras, em cena no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, de quinta-feira a sábado.

O conto “A fera na selva” (“The beast in the jungle”), escrito pelo britânico Henry James (1846-1916), em 1903, foi o ponto de partida da autora francesa para, em 1961, fazer uma primeira versão da peça homónima, a que voltou em 1983, estabelecendo o texto que agora sobe ao sobe ao palco do pequeno auditório do CCB, numa encenação de Miguel Loureiro.

A partir da tradução de João Paulo Esteves da Silva, Miguel Loureiro construiu a peça, mais pelo prazer de trabalhar um texto que “sobrevive na sua beleza e vitalidade – porque não dá o nome exato daquilo que quer falar -“, do que pela simples construção de um espetáculo, como o próprio disse à agência Lusa.

O texto é “absolutamente primo ou gémeo do resto das temáticas ‘durasianas'”, disse Miguel Loureiro, localizando a obra nas linhas de fronteira da autora de “O amante” e de “Hiroxima, meu amor”, deixando, por isso, a cada pessoa, a possibilidade “de se inscrever nele”, referiu Miguel Loureiro.

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É como se cada um de espetadores da peça fosse ou pudesse ser uma das personagens, John Marcher (Filipe Duarte) ou Catherime Bertram (Margarida Marinho)

Um homem petrificado que não consegue dar um passo na vida e uma mulher disposta a acompanhá-lo na espera de uma fera que um dia poderá surgir, e destruir tudo, constituem o pano de fundo de “a fera na selva”, um texto que, para Miguel Loureiro, é uma parábola “do medo de se estar absolutamente parado na vida”.

A peça opera “sobre a construção de um enigma em seis quadros”, num processo que é “comum” a todos os seres humanos, “tanto aos que a fazem como aos que a veem”, sublinhou Miguel Loureiro.

Marguerite Duras traduziu o conto para francês, pela primeira vez, em 1961, na altura em que ajudou James Lord a fazer a transposição da narrativa para teatro, em inglês, explorando, como núcleo do drama “o grande medo da catástrofe”.

“A grande ansiedade da maneira de viver, o grande medo da vida, que uns associam ao advento do amor, outros ao da falência do corpo, outros ainda ao ficar-se estagnado, é e serão sempre questões inerentes ao ser humano”, argumentou Miguel Loureiro.

É “uma peça genial”, sublinhou o encenador, que sublinhou o facto de, ao longo dos 75/80 minutos de duração, nunca se conseguir perceber qual o assunto principal, uma vez que os diálogos entre as duas personagens “andam sempre em labirinto, sem que algum dos dois abra alguma vez o jogo completamente”.

E é isso que faz esta peça “motivante”, refere o encenador, que há dois anos pôs em cena “Um diário de preces”, de Flannery O’Coonor, no CCB, e agora foi convidado pela instituição para trabalhar um de dois textos: este, de Marguerite Duras (1914-1996), Prémio Goncourt 1984, ou “A balada do café triste”, de Carson McCullers (1917-1967).

Acabou por optar pelo texto da autora de “A Dor”, por gostar dos temas abordados pela escritora nascida na Conchichina (Vietname), e por o romance de Carson McCullers ser “um bocadinho um romance de culto”, e “uma coisa muito marcada em termos iniciáticos”.

Além de oferecer ao encenador a possibilidade de se estrear no universo da autora de “O vice-cônsul”, o texto de Marguerite Duras permitia-lhe ainda entrar no universo de outro autor que “venera”, Henry James.

E apesar de não conhecer este texto de Marguerite Duras — Miguel Loureiro “era mais próximo de livros como ‘Uma barragem contra o Pacífico’, ‘O amante’ ou ‘Os pequenos cavalos de Tarquínia’ e de filmes, como ‘India song'”, referiu — acabou por optar pela autora francesa, sobre a norte-americana que foi pioneira na abordagem de temas como a homossexualidade, o racismo ou o adultério.

Miguel Loureiro, acabou por optar assim pela segunda versão dramatúrgica que a autora de “Moderato cantabile” escreveu em 1983, e que foi então protagonizada em palco por Gérard Depardieu e Fanny Ardant.

O encenador recorda que tanto o texto dramatúrgico da escritora francesa como o do autor norte-americano, que acabou por se naturalizar inglês, têm “personagens da mesma família, talvez com um ligeiro desequilíbrio para a personagem feminina de Henry James”, observou.

Tanto assim que “Duras acaba por mudar o nome da personagem, de May passa a Catherine, acabando por lhe dar o mesmo tipo de complexificação psíquica da personagem feminina”, indicou. “E embora a matriz desta peça não seja da Duras”, mas de James, “nós notamos toda a gramática” da escritora no drama. “Até mesmo a projeção que faz dela na personagem feminina”, conclui Miguel Loureiro.

Com cenografia de Tomás Colaço, figurinos de José António Tenente, desenho de luz de Daniel Worm e sonoplastia de Pedro Costa, “A fera na selva” é uma coprodução do CCB, Culturproject e do Rivoli Teatro Municipal do Porto, vai estar em cena em fevereiro de 2019.

Miguel Loureiro admitiu a possibilidade de “A fera na selva” voltar a cartaz em Lisboa. O encenador gostava de a ver reposta numa “sala mais intimista” ainda que, até ao momento, não tenha nada em concreto.