Manuel Alegre disse esta terça-feira, no seu discurso de agradecimento pelo doutoramento Honoris Causa, concedido pela Universidade de Lisboa, que foi sempre “um solitário” e nunca pertenceu a nenhuma corrente ou café literário.

“Embora tenha sido, por diversas razões, uma figura pública conhecida, como escritor fui sempre um solitário. Nunca pertenci a nenhuma corrente, a nenhum café literário, a nenhum grupo. O que tem os seus custos. Mas escrever, para mim, foi sempre um estado de graça. Mesmo nas situações mais difíceis – guerra, prisão, exílio e o irremediável de muitas despedidas e muitas mortes”, afirmou Manuel Alegre.

O autor de “O Canto e as Armas” passou em revista o seu percurso académico, literário e cívico, numa intervenção que demorou 19 minutos, durante os quais saudou em particular o antigo Presidente da República Ramalho Eanes, uma intervenção longamente aplaudida no final e que apenas foi interrompida, para os primeiros aplausos, quando o escritor alertou para os revisionismos que procuram “negar a grandeza das navegações portuguesas”, “redimir o colonialismo e branquear a ditadura e a guerra colonial”.

“Vivi sempre a um certo ritmo. Um ritmo de escrita e de ação. E se o ritmo é uma visão do mundo, como escreveu Octávio Paz no seu ‘O Arco e a Lira’, ambos estiveram sempre ligados em mim a um grande sentido de urgência. Sempre que ouvia dizer que a paciência é revolucionária, eu retorquia que revolucionária só a impaciência”.

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“Aprendi que cada um de nós tem várias vidas, vários eus, vários outros. Uma espécie de íntima heteronímia. É talvez o sentido do célebre verso de [Arthur] Rimbaud: ‘Je est un autre’ [‘Eu sou um outro’]”. Referindo-se ao tempo da universidade, em Coimbra, recordou que, quando o reitor Braga da Cruz o chamou para “ligar mais ao curso” de Direito, lhe respondeu: “Ligo imenso, magnífico reitor, mas não tenho tempo”.

E não tinha. Era a natação, o teatro (CITAC e TEUC), o jornal A Briosa, a Vértice, os amores, a poesia, a política e o movimento estudantil, que viria a ser um elo de ligação entre as três universidades do país. E ainda as vindas a Lisboa, por causa do Decreto Lei 40.900, com que o ministro da Educação Leite Pinto visava aniquilar a autonomia das Associações de Estudantes”.

Manuel Alegre recordou quem teve a coragem para escrever sobre si no tempo da ditadura, “como fez Urbano Tavares Rodrigues, que foi o primeiro a dar notícia de ‘Praça da Canção’, no jornal República”. “Mas também foi preciso outro tipo de coragem para me ler sem complexos nem inibições, depois do 25 de Abril, em tempo de novos sectarismos e classificações redutoras”, disse, referindo que “Paula Morão não se deixou impressionar”.

Para o poeta “é um privilégio” ser lido pela catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e acrescentou: “Outros, felizmente, também não. Para só citar dois nomes incontornáveis, devo a Eduardo Lourenço o prefácio que marcou um virar de página e assinalou a nostalgia da epopeia nos meus primeiros livros; e devo a Vítor Aguiar e Silva uma leitura que abriu novos horizontes e deixou um texto incomparável sobre ‘Senhora das Tempestades’”, uma das obras poéticas do escritor, publicada em 1998.

“Paula Morão restituiu-me uma visão da minha escrita toda, poesia, prosa, arte poética. Ela vê o que está escondido e, como diria Alexandre Blok, ouve a música do Mundo dentro das palavras. Os poetas precisam de quem os saiba ler assim”, disse. Paula Morão, a quem deve a uma leitura a que chama “libertadora”, foi quem “pela primeira vez falou de ‘a face dupla’”.

“Não apenas a parte combativa e épica, mas a outra, aquela em que diz que, na sombra, há um ser lunar, íntimo, secreto, elegíaco. Creio que esta visão inovadora é essencial, porque é aí, nesse lado mais secreto, que fica a morada da poesia. Ela soube ler, desde o início, a pergunta sobre ‘o que somos nós’ e descortinou para lá do óbvio ‘o outro lado’ e ‘os outros campos onde se travam outras batalhas’ que não são senão a busca do sentido”.

Manuel Alegre reconheceu que “a intervenção cívica na vida democrática normalizada nem sempre foi estimulante, embora tenha muito orgulho em ter sido deputado constituinte, redator do preâmbulo da Constituição [de 1976] e de ter dado o [seu] contributo para a consolidação da Democracia”.

“Nunca abandonei a convicção de que, pela palavra poética, pode sempre criar-se, como dizia Teixeira de Pascoaes, a terra do outro mundo. E também nunca deixei de ter, embora peça desculpa de me repetir, uma visão poética de Portugal, uma visão integradora, em que se misturam poemas, batalhas, revoluções”.

Distinção de Manuel Alegre “é justa” e nobilita Universidade de Lisboa

A distinção de Manuel Alegre como Doutor Honoris Causa, pela Universidade de Lisboa, é uma “justa homenagem, que nobilita a instituição”, disse a investigadora Paula Morão, na apresentação do escritor. “Manuel Alegre não precisa de distinções — já recebeu os mais altos galardões como cidadão e como escritor; mas a Universidade portuguesa deve-lhe a homenagem justa, que nobilita a instituição, por contar oficialmente no elenco dos seus um daqueles que, sem dúvida, se enquadram nas ‘personalidades eminentes’, nacionais ou estrangeiras”, disse Paula Morão, catedrática do Departamento de Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

“Estes requisitos estão espelhados no alto grau de cidadania e de intelectual que Manuel Alegre representa: o exemplo ensina, e prestigia-nos a nós como instituição”, atestou a professora, madrinha do laureado.

Foi esta faculdade, disse Paula Morão, que propôs o escritor para receber esta distinção, desde logo pela sua obra literária iniciada em 1965, com a edição do livro de poesia “Praça da Canção”. “A prática daquele género [poesia] tem sido constante até ao presente, caracterizando-se por uma qualidade cujas características têm sido reconhecidas por críticos tão eminentes como Eduardo Lourenço e Vítor Aguiar e Silva”, afirmou Morão, para referir em seguida que a “profícua obra poética de Manuel Alegre mantém desde o início um conjunto de características que fazem deste autor um marco do que de melhor o género lírico em Portugal apresenta, desde a década de sessenta de novecentos até ao presente”.

A catedrática realçou que na poética de Alegre está patente uma “consciência literária visível nas raízes de múltiplas tradições, antigas e modernas, que a sustentam: lá estão, a comprová-lo, Virgílio e Homero, o rastro medievo dos trovadores portugueses e provençais, os traços de Fernão Lopes, de Camões (o épico, o lírico autor de sonetos, epístolas e elegias) ou de Bernardim, com os de Fernão Mendes Pinto ou vestígios de Antero de Quental, António Nobre e Camilo Pessanha, de Mário de Sá-Carneiro ou de [Fernando] Pessoa”.

Lá vemos ainda a linhagem de François Villon, a par de traços de Shakespeare (e em especial de Hamlet, o príncipe da melancolia), de Rimbaud e de Mallarmé, ou de vários outros ‘rouxinóis do mundo'”, acrescentou Paula Mourão referindo que “todos desenham os alicerces de uma poética muito consciente de si e do seu lugar, na linhagem da poesia ocidental, consolidada ao longo de mais de cinco décadas”.

A obra poética de Manuel Alegre “representa na literatura portuguesa contemporânea um caso de coesão e de excelência”. Segundo a catedrática, na obra poética de Manuel Alegre “não se vê um mero caso de evolução — antes se tratando de ir fazendo mais firmes, pela oficina poética, os veios diferentes que desde o início e ao longo do tempo vão urdindo os poemas e os livros numa só túnica inconsútil”. Para a professora da Faculdade de Letras de Lisboa, “caminho similar se desenvolve na obra em prosa” de Manuel Alegre, “porventura menos conhecida”.

Na prosa de Alegre, “a ficção autobiográfica largamente se estende à condição do humano, ‘tematizando’ questões nodais para pensar Portugal hoje: a autoconsciência que se forma e cresce, a experiência da Guerra Colonial ou a do exílio encontram-se na encruzilhada de um percurso de vida condicionado por uma ascendência familiar provinciana bem peculiar e exemplar, depois continuando com a vida académica de Coimbra nos anos em que a educação era tanto de via profissional como de vertente interventiva, e mais tarde ainda com a vida na dura condição de exilado da pátria muito amada”.

“Nos romances de Manuel Alegre leem-se linhas coerentes com o que a sua poesia já havia desenhado, reforçando a noção de obra já antes referida: o sujeito protagonista apresenta-se com uma face dupla – solar, empenhado, combativo e épico, mas na sombra se lhe contrapondo um alter ego lunar, íntimo, secreto, elegíaco”, disse Morão. “Deste território dúplice e múltiplo resulta o caráter interventivo, às vezes à ‘contre coeur’, que a obra de Alegre assumiu ao longo dos anos”, afirmou.

A catedrática referiu ainda como os livros de poesia de Manuel Alegre, publicados na década de 1960, “foram tomados como bandeira por uma geração em luta contra a ditadura”. “Os cantores de maior qualidade e capacidade interventiva impuseram à comunidade a força efetiva de poemas transformados em flâmulas do combate pela justiça e pela liberdade”.

Exilado em Argel, de onde se podia ouvir a sua voz “com timbre vigoroso e quente”, na rádio Voz da Liberdade, Manuel Alegre regressou a Portugal depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, “e desde aí assiste-se, em plena coerência, à participação visível na vida política, tendo ocupado lugares proeminentes na vida pública, a par do nunca abandonado percurso literário, sempre com o recuo crítico e intimista que permitiu [ao escritor] ser quem é”,

Todo o percurso define-o assim, como um “Homem dum só parecer,/ De um só rosto e uma só fé,/ De antes quebrar que torcer”, como escreveu Sá de Miranda, “e lhe convém”, recordou a professora.

Paula Morão referiu ainda a vertente ensaística do autor de “Cão como nós”, com a “abundante conta” de textos ensaísticos, “que se repartem entre a reflexão sobre a escrita e sobre a cidadania, glosando o verso de ‘Os Lusíadas’ que gravou para sempre na língua portuguesa essa dualidade: ‘Numa mão sempre a espada, e noutra a pena'”.

A cerimónia abriu as 15h10 com a entrada do cortejo académico, ao som de uma das mais conhecidas marchas de “Pompa e Circunstância”, do britânico Edward Elgar, no qual se integravam o distinguido, o Presidente da República e o reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra.

Após o elogio de Paula Morão, madrinha do laureado, o ator Diogo Dória iniciou a leitura de poemas de Manuel Alegre. Segue-se a alocução de Manuel Alegre.

A cerimónia será encerrada com uma atuação da cantora Cristina Branco, para interpretar dois fados com poemas do laureado, entre eles, “Meu Amor é Marinheiro”, musicado por Alain Oulman, uma criação de Amália Rodrigues.