De um lado estavam Filipe Ferraz e Rui Camacho, membros da associação musical e cultural Xarabanda, que recolhe, inventaria, estuda e divulga música tradicional da Madeira. Do outro estava André Santos. André é um guitarrista de jazz que já colaborou com os músicos Ricardo Toscano, João Hasselberg, Salvador Sobral e com o seu irmão Bruno Santos no duo Mano a Mano (curiosamente, também título de um dos singles do próximo disco de Sobral). Acresce que André Santos é madeirense e fez uma tese de mestrado sobre três instrumentos da Madeira: braguinha, viola de arame e rajão.

As afinidades entre músico e associação existiam. Quando, depois de 40 anos a recolher gravações de cantigas tradicionais da Madeira, os responsáveis da associação Xarabanda idealizaram um projeto de recuperação e recriação dessas tradições, lembraram-se do guitarrista. André Santos acedeu, a princípio com “algum receio”, pelo risco de “pegar em coisas tão preciosas e estragá-las”. Deixou o receio de lado e formou um trio chamado MUTRAMA — Música Tradicional da Madeira Revisitada, ao lado do contrabaixista António Quintino (que também toca com Dead Combo) e do baterista Joel Silva (colaborador de longa data do pianista Júlio Resende). Convocou outros músicos e cantores, gravou um disco e esta quinta-feira apresenta-se com MUTRAMA no Teatro São Luiz, em Lisboa, para um concerto (às 21h) em que também estarão alguns dos convidados do disco, como Salvador Sobral, Maria João e Mariana Camacho.

Mourisca de Santana (Teaser Teatro São Luiz)

Dia 4 de Outubro, às 21h, estaremos no São Luiz Teatro Municipal a apresentar as nossas canções. Aqui fica um cheirinho da Mourisca de Santana, ao vivo no Teatro Baltazar Dias, pela voz de Mariana Camacho.Pode comprar o seu bilhete em: https://www.bol.pt/Comprar/Bilhetes/65774/578300/Sectores

Posted by Mutrama on Wednesday, September 19, 2018

Nem todos os convidados do álbum, editado este verão e que pode ser ouvido aqui, poderão participar no concerto, por questões de agenda. O fadista Ricardo Ribeiro, que no disco interpreta a canção “Camisinha do Menino”, não conseguirá estar presente. Desidério Lázaro, saxofonista proeminente do jazz português e que toca em “Baile da Meia Volta”, também estará ausente, sendo substituído por João Mortágua, também com percurso firmado nesse estilo musical. Mas há novidades inesperadas, como um ensemble de cordofones que não tocou no disco e que tocará ao vivo braguinha e rajão. Também assegurada está a presença de Salvador Sobral, que cantará (tal como no disco) o tema “Noite Serena”. Maria João cantará “Pensação do Menino” e Mariana Camacho a canção “Baile da Meia Volta”.

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Algumas destas canções permitem alguma liberdade [de interpretação], outras têm de ser tocadas tal como são. A maior parte destes intérpretes vem do mesmo meio que eu, o jazz. Falamos a mesma linguagem e deposito total confiança em todos eles. Para a ‘Noite Serena’, por exemplo, imaginei logo a voz do Salvador [Sobral] e quando ouvi a ‘Pensação do Menino’ também pensei logo na Maria João”, afirma André Santos ao Observador.

De Amesterdão para a ilha

Foi precisamente quando estava em Amesterdão para fazer um mestrado que André Santos começou a dedicar mais atenção à música tradicional da sua região, do bailinho aos cantares tradicionais que a passagem do tempo quase apagou da história. “Não conhecia praticamente nada e senti isso quando fui para Amesterdão”, começa por explicar, acrescentando: “Era um músico de jazz e jazz toda a gente conhecia. O que é que podia mostrar de novo e da minha casa?”.

Sendo “um guitarrista” e sendo a viola de arame, rajão e braguinha “instrumentos de cordas”, pensou em experimentá-los, “ver o conseguia fazer com eles”. O trabalho da associação Xarabanda também aguçou a curiosidade, porque “aumentou o número de tocadores” desses instrumentos tradicionais, alargando-os a um espectro de músicos “mais jovens”. Quando chegou a altura de decidir o tema da tese, que era livre, decidiu que seria sobre esses cordofones madeirenses. Ia mostrá-los e divulgá-los aos colegas e aos músicos de jazz de Amesterdão. Não é muito diferente do que fez agora com MUTRAMA, divulgando esses instrumentos (que toca no disco) e canções tradicionais da região em disco e nos palcos.

Hoje o Rajão entra em acção para tocar esta canção! 'Anda estragar-me os planos' @francisca.cortesao @afonsoc @joanabarravaz

Posted by André Santos on Sunday, July 22, 2018

“O Rui Camacho, da associação, começou por enviar-me cerca de 100 recolhas que tinham feito, a mais antiga de 1982 e a mais recente de 2015”, conta André Santos, sobre o início da composição do disco. “Comecei a ouvir essas recolhas sem compromisso. Algumas chamavam-me mais a atenção, outras não tanto. As que já conhecia ia descartando, porque não me surpreendiam. Fiz uma pré-seleção de 20 recolhas, tentei ver que caminhos e intérpretes as melodias sugeriam e fui começando a fazer os arranjos”, acrescenta.

No disco, ficaram registadas dez canções, todas com melodias de que o música “gosta muito”, e duas das quais (“Canção da Serra” e “carga da Cana-de-Açúcar”) agrupadas no nono e último tema do álbum. Das canções gravadas, e que o guitarrista ouviu primeiro cantadas por locais e séniores como “a Maria Clara, da Calheta” e “a Beatriz Silva, do Penedo”, só conhecia uma, “Camisinha do Menino”. “As outras não conhecia e mesmo na Madeira pouca gente as conhece, só investigadores como o Rui Camacho, aficionados por estas coisas”.

Percebi que algumas destas canções tradicionais são comuns a outras zonas do país e são tão antigas que é difícil precisar a origem. Mas a ‘Carga da Cana-de-Açúcar’, por exemplo, fala um bocadinho do que era ser madeirense em épocas de apanha dessa cana. Há aqui cantigas de trabalho, religiosas…”, refere André Santos.

A reação de algumas pessoas mais velhas, que conheciam as canções nas versões mais antigas, era uma preocupação para o músico: “Poderiam ser mais alérgicas a estas novas roupagens de música tradicional”, refere. “Não foi o caso”, talvez porque, neste projeto como em outros, André Santos não gosta “de mudar radicalmente” temas alheios que recria. “Não gosto de os transfigurar, gosto de respeitá-los, acrescentando-lhes o meu ponto de vista, uma ou outra textura diferente que imagino para as canções”.

No disco, “alguns temas começam com recolhas, com gravações antigas de senhoras a cantar, passando-se depois para intérpretes atuais”, refere André Santos. “Quis manter um respeito pela tradição sem ter medo dela”, aponta ainda. Depois de apresentar o projeto em alguns concertos, MUTRAMA chega agora a Lisboa, ao Teatro São Luiz. Não haverá bailinho, mas a dança está prometida.

André Santos e Salvador Sobral convidam…Concerto de Mutrama – Música Tradicional Madeirense. É amanhã no São Luiz Teatro Municipal às 21h!Quem resiste a este convite?

Posted by Fado in a Box on Wednesday, October 3, 2018