Domingo, dia santo. A procissão segue à sombra, na cadeira bamba de plástico, sol abrasador do subúrbio carioca, na comunhão de quem vive longe da praia, sustentado pela cerveja gelada, com uma sede de anteontem. Couve, torresmo, linguiça, laranja, farofa, toucinho no caldeirão e vamos botar água no feijão. A sobremesa é a especialidade da casa, amores e desamores em samba, uma digestão de cantar arrastado, uma festa sem fim, na malandragem, alegre pela possibilidade de viver mais um dia descansado, rodeado de amigos, família, de barriga cheia. Zeca Pagodinho é a felicidade do subúrbio carioca, a banda sonora de todas as feijoadas numa estrada dessa vida, o narrador de um povo sagaz, de grande coração, em desalinho.

A Zona Norte — Rio de Janeiro — é um imenso território, desde o vertiginoso complexo do Alemão à portugalidade de São Cristóvão, onde ardeu o maior espaço cultural da região. Irajá é na Zona Norte, periferia que Lima Barreto tão bem descreveu, e anos depois ficou demarcada pelo ritmo imparável de Zeca Pagodinho, um pandeiro, cavaquinho e coros de uma nação alegre, mesmo que infeliz. “Irajá está muito diferente, antigamente a gente podia andar na rua na madrugada, subir os morros, ficar na porta de casa conversando, contando casos, até tarde”, conta amargurado ao Observador Zeca Pagodinho, filho de Irajá, sambista com 35 anos de carreira, com festa marcada dia 3 de outubro no Coliseu de Lisboa, e dia 10 no Coliseu do Porto. “Irajá tinha muita música, muito bloco, por vezes até melhores que as escolas de samba”.

A vida foi a primeira escola de Zeca Pagodinho, um adolescente reconhecido em qualquer botequim de Irajá, a carregar de nascença um sorriso malandro e um desembaraço carioca. “O jogo de bicho deve ser estudado em faculdade, é das maiores matemáticas que tem, mas para ensinar você como funciona precisa de uma escola”, responde sobre os anos que passou em volta da clandestinidade do jogo ilegal de apostas, indissociável — até hoje — da história do carnaval e samba. “O jogo de bicho, assim como o futebol, está sempre ligado ao samba”, confirma. “Você está na rua, jogando ou vendo jogo, e está ouvindo samba”.

O samba é música de rua, criada por, e para, quem está sentado no passeio, no bar, na esquina, uma voz do morro que comprova que isto é gente com valor.

“Em qualquer esquina eu paro
Em qualquer botequim eu entro
Se houver motivo
É mais um samba que eu faço”

Assim exaltava Zé Keti no clássico “Diz que fui por aí”, canção que Zeca vai recriar nesta passagem por Portugal, assim como “O sol nascerá”, esta última de Cartola, o mestre de levar a vida triste a sorrir. “Ouvia Zé Keti, ouvia Cartola, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga e muitos outros”, conta sobre a adolescência, acrescentando que, “Zé Keti foi um dos nossos maiores poetas, é talvez o cantor mais importante para o Brasil e para o samba”.

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Quando se fala em rodas de samba não é descabido lembrar-nos do início do fado, entre tabernas e canecas, risadas e danças, cantores de teor alcoólico, com gargarejo, comida e risada à grande, versos a surgir à velocidade da piada brejeira, trocadilhos, grande festa, enquanto no fundo, um mesmo ritmo, um mesmo sentimento, que estabelece uma entidade única, canções que são muitas mas parecem a mesma. Este é o espírito transgressor que preenche os domingos, de feijoada e samba, em Cacique de Ramos, na Velha Guarda da Portela, um misto de centros de convívio e acirrada competição que são ícones do carnaval e samba carioca.

“Com 18 anos já comecei a conhecer a Velha Guarda da Portela, e antes disso cantava só em botequins, nas esquinas, cantava do meu jeito”, explica. “O Cacique de Ramos foi onde conheci grandes mestres e músicos como Fundo de Quintal”. Ao lado de Arlindo Cruz — que descreve como “grande parceiro, compadre, padrinho do meu filho, irmão” — entrou pé ante pé nas rodas do Fundo de Quintal, o grupo responsável por transportar este género de samba para algo comerciável, e onde o versátil Jorge Aragão passou os primeiros anos de composição, outro parceiro fundamental na carreira de Zeca Pagodinho. Nascia uma nova geração, e a maior intérprete feminina do samba, Beth Carvalho, já estava de olho no mais malandro da turma.

“A Beth gravou o meu samba ‘Camarão que Dorme a Onda Leva’ e fez dele um sucesso”, conta modestamente, na altura ainda um moleque desconhecido de vinte e poucos. “Um dia ela me chamou para gravarmos um clip juntos num programa de TV muito forte daqui, o ‘Fantástico’, e daí em diante minha carreira disparou”. Numa altura em que o samba, e mais precisamente o popular pagode, procurava firmar espaço nas grandes vendas da indústria musical, depois de anos com parca representação, o surgimento de novos compositores como Zeca e Arlindo Cruz foi a garantia que esta música teria continuidade. Em 1985 é lançado o álbum que revelaria muitos desses novos talentos, Raça Brasileira, com protagonismo da portentosa Jovelina Pérola Negra e o magricelas Zeca Pagodinho, sobretudo pelo dueto e crónica de uma feijoada traumática:

“Fui no pagode
Acabou a comida
Acabou a bebida
Acabou a canja
Sobrou pra mim
O bagaço da laranja”

O pagode era uma roda de samba, uma festa montada de música e cachaça, e aos poucos, o pagode torna-se num género, num monstro indefinido de muitos braços e pernas, a torto e direito, tudo leva com o rótulo de pagode para facilitar na hora da embalagem. “O pagode significa uma reunião onde tem música, seja ela samba, seresta ou até mesmo música sertaneja, uma moda de viola”, explica Zeca. “Mas depois de um tempo a palavra passou a ser usada como um género”. Um ritmo rasteiro cantado de boca cheia que Zeca domina, fita, e marca de goleada em 1986, no primeiro disco em nome próprio, 600 mil cópias vendidas, um dos candidatos ao melhor álbum de samba-pagode alguma vez lançado. “Os sambas tocaram o público, as pessoas se identificaram com as letras e isso fez deles todos um sucesso”.

O álbum homónimo de 86 é a base dos concertos em Portugal, as canções pilares que seguram esta carreira de 35 anos. A sucessão extraordinária de sucessos começa com “SPC”, parceria dos amigos Zeca e Arlindo, e sigla para o banco de dados que analisa a credibilidade financeira dos clientes brasileiros (Serviço de Proteção ao Crédito), um motivo de canção tão genial como corriqueiro:

“E depois você quis
Manchar meu nome
Dentro do meu metiêrMexeu com a moral
De um homem
Vou me vingar de você
Porque
Eu vou sujar
Seu nome no seu SPC”

Segue-se “Coração em desalinho” com o característico cantar arrastado de Zeca, “Judia de mim” com Wilson Moreira, “Brincadeira tem hora”, e a encantadora, honesta, “Casal sem vergonha”:

“A minha vida
A minha vida é um mar de rosa
Em tua companhia
Brigamos mil vezes ao dia
Mas depois as brigas
Retorna a harmonia
Às vezes ela é dengosaÀs vezes é bicho de peçonha
Sem vergonha
Somos um casal sem vergonha”

E claro, depois da tempestade a bonança:

“Quando fazemos as pazes
Nós somos os ases na arte do amor”

Portugal acordou para o pagode nos anos 90, consequência da corrente migratória que chega ao nosso país, desgraçados em fuga da miséria económica e moral do Governo Collor. Esta década foi o momento que o género se torna ao lado de Axé o mais vendável da indústria musical brasileira, realidade que passa indiferente aos olhos do terreno Zeca, sempre de pés no chão. “Nunca me liguei nisso, sempre fiz samba sem me preocupar com o mercado”, garante. “O que acho que aconteceu é que o samba se apresentou de várias maneiras e a mídia começou a colocar rótulos”.

“Verdade” foi o grande sucesso dos anos 90, um claro amadurecimento musical, maior engenho técnico e melódico, menor improviso de roda de samba. “Não Sou Mais Disso” explicava esta nova fase pós-magricela da boémia:

“Eu não sei se ela fez feitiço
Macumba ou coisa assim
Eu só sei que estou bem com ela
E a vida é melhor pra mim
Eu deixei de ser pé-de-cana
Eu deixei de ser vagabundo

Aumentei a minha fé em Cristo
Sou bem-quisto por todo mundo
Na hora de trabalhar
Levanto sem reclamar”

O povo brasileiro não deixou de comer feijoada ao domingo, nem perdeu a necessidade de cantar — abraçado, zonzo pela cachaça — contra as amarguras da vida, e por isso, Zeca nunca deixou de ser Zeca, sentado de copo na mão ou desengonçado em pé, a entreter um país. “Deixa a vida me levar”, de 2002, é outra obrigatória em qualquer alinhamento, cada vez mais aprimorado apesar da “origem pobre”, uma máquina oleada de pagode com arranjos que não devem a ninguém na MPB, inspirado pela conversa de rua, tu cá tu lá, papo de autocarro, trabalho, botequim, missa:

“Se a coisa não sai do jeito que eu quero
Também não me desespero
O negócio é deixar rolar
E aos trancos e barrancos, lá vou eu”

Hoje, quando Zeca não está a gravar ou em concerto, vagueia pelas ruas que tingiu em canções, tem um apreço lendário com a cerveja, sendo inclusive o responsável por esta frase memorável: “Sempre que fico bêbado no shopping eu compro um cachorro” (revelação em entrevista à revista TPM). E foi novamente celebrado nestes últimos tempos por ser o herói que lançou um produto indispensável, um stand-up paddle com arca frigorífica incorporada. Tudo é inspiração para o eterno boémio que percorria as esquinas de Irajá a trautear melodias, histórias de um povo, entre cada trago, cada roda de samba, cada pagode. “Às vezes uma ideia surge de improviso, ou às vezes a gente se reúne com objetivo de fazer um samba”, explica sobre o método de composição, a descrever de imediato o que consiste afinal esta reunião de amigos e familiares em volta de instrumentos: “A roda de samba é uma mistura de alegria, respeito e muita cerveja”