Foi Miguel Barreto, então diretor-geral de Energia, que pediu à REN (Redes Energéticas Nacionais) para voltar a elaborar os cálculos que definiram o valor a pagar pela EDP, em 2007, em troca da extensão do domínio hídrico das barragens. Esse valor, muito inferior ao que foi proposto pela REN, tem sido um dos pontos centrais das suspeitas em redor do alegado favorecimento dos Governos à EDP, em particular durante o consulado de Manuel Pinho no Ministério da Economia.

O processo que conduziu ao pagamento de 705 milhões de euros por parte da elétrica pelo direto a explorar por mais 25 anos 27 barragens foi reconstituído por Vítor Batista, então administrador da REN, durante a sua audição na comissão parlamentar de inquérito às rendas excessivas da eletricidade esta quarta-feira. A pedido do deputado do Bloco de Esquerda, Jorge Costa, o ex-gestor da REN lembrou que no final de 2006 a empresa gestora das redes e a EDP, então representada por João Manso Neto, tinham chegado a um acordo sobre o critério e o valor económico da decisão de prolongar a exploração das barragens.

Mas passados dois ou três dias, Vítor Batista admite que terá sido no início de dezembro de 2006, “recebo um mail do diretor-geral” a pedir para a REN fazer os cálculos com taxas de atualização diferentes daquelas que até agora tinha usado. “Fiquei muito espantado porque não tinha aquela informação”, testemunhou Vítor Batista que também destacou não ter sido avisado por Manso Neto com quem tinha trabalhado as contas iniciais. Segundo Jorge Costa, terá sido o então diretor da EDP a enviar outros números ao Governo já depois de ter consensualizado com a REN os primeiros valores.

O ex-administrador da REN contou que explicou a Miguel Barreto a posição da REN e que o então diretor-geral lhe comunicou a posição, nova, da EDP e a existência de um confronto entre os dois pontos de vista quanto à taxa de atualização que deveria ser usada para calcular o valor residual dos ativos que ficaram para a elétrica e pelos quais esta teria de pagar ao Estado. Miguel Barreto, um dos visados na investigação da justiça aos contratos da EDP, será ouvido no Parlamento na próxima quarta-feira, dia 10 de outubro.

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Contra-relógio para fechar acordo com a EDP

Perante o pedido de novos cálculos, o tema foi discutido no conselho de administração da REN, então liderada por José Penedos, com o também administrador Paulo Pinho. Os antigos gestores da gestora da rede elétrica, nomeadamente José Penedos, já afirmaram nesta comissão que o desfecho do processo não respeitou o interesse público. E agora Vítor Batista revelou novos detalhes sobre os bastidores da decisão polémica. Um deles é a pressa do Governo, manifestada pelo ex-diretor-geral, em fechar o tema. “Havia bastante pressa no Governo”. E qual era a pressa? Vitor Batista não sabe, mas reconhece que foi feito a “contra-relógio”, ainda que a conta, que deu uma “diferença de 400 milhões de euros” a favor da EDP, fosse rápida de fazer.

Ex-presidente da REN com pouca memória diz que decisão sobre barragens da EDP “foi contra o interesse nacional”

Miguel Barreto terá telefonado a 4 de janeiro de 2007 a Vítor Batista, pedindo as novas contas até 7 de janeiro. “Tentei fazer valer os argumentos da REN, mas não devo ter conseguido”. Por isso, defendeu que alguém de direito deveria ser avisado sobre a diferença nos critérios, entre os sustentados pela REN e os que foram depois propostos pela EDP. O antigo gestor contou que discutiu o tema com José Penedos que lhe recomendou: “Você é independente, exerça o seu direito”. E destacou que procurou ser transparente.

E porque não foi uma tomada de posição da empresa? Vítor Batista diz que para ter chancela da REN teria de ser visto por todos os administradores.  “Estava bastante pressionado para fazer o mais depressa”. Na altura, o Governo estava sob pressão para encontrar formas de limitar o aumento do preço da eletricidade e o dinheiro do negócio com as barragens da EDP foi em parte usado para esse objetivo.

Vítor Batista afirmou ainda que só enviou o estudo da REN ao então secretário de Estado, Castro Guerra, e que foi chamado à Horta Seca (sede do Ministério da Economia) para discutir o tema com o então assessor do ministro da Economia, Rui Cartaxo. Adiantou também que só ficou a saber o valor fixado pelo Governo de 759 milhões de euros, aos quais foram depois deduzidos os 55 milhões de euros da taxa hídrica, quando os diplomas foram publicados. E voltou a dizer que foi uma surpresa. Também desconhecia quais eram as entidades independentes que fizeram as contas — dois bancos de investimento.

Vítor Batista criticou aspetos da posição da Comissão Europeia que validou o critério usado pela EDP para calcular o valor da extensão numa decisão de 2017, lembrando que contraria a primeira posição tomada em 2013 quando analisou a queixa. E disse que não entende porque Bruxelas diz que a REN não é independente.

Entregar barragens sem concurso. Porta foi aberta em 2003 no Governo de Durão Barroso

Sobre a alteração no quadro legal que permitiram a entrega por mais 25 anos da exploração das barragens à EDP, Vítor Batista remeteu para um despacho de julho de 2013, assinado pelo secretário de Estado, Franquelim Alves em nome do ministro da Economia, Carlos Tavares, no Governo de Durão Barroso que leu:

“No caso dos produtores hidroelétricos, caso o produtor pretenda manter a exploração até ao termo da concessão do domínio hídrico, aquele valor residual poderá ser deduzido do valor, reportado à mesma data, dos bens, que nos termos do seu título de concessão, não devessem reverter gratuitamente para o Estado no final dos CAE (contratos de aquisição de energia)”

Para Vítor Batista, a alteração do domínio hídrico terá resultado de um compromisso estabelecido em 2005 na altura da passagem dos CAE para os CMEC. “Essa abertura julgo que aparece num despacho em julho de 2003”.

E quando confrontado pelo deputado Duarte Marques do PSD sobre se essa formulação não seria herdeira direta dos CAE aprovados em 1996, Vítor Batista não concordou. Nestes contratos estava previsto o lançamento de um concurso público após o fim do contrato de concessão/neste caso do prazo do domínio hídrico, coisa que acabou por não acontecer na sequência dos CMEC. Apesar de ter assinado os contratos que passaram dos CAE aos CMEC em 2005, Vítor Batista disse que não participou nas negociações e que a materialização da decisão de entregar as barragens sem concurso não passou pela REN. Mas também assinalou que não ficou surpreendido quando percebeu que essa era uma condição suspensiva da passagem dos CAE para os CMEC. Ou seja, que a EDP não aceitaria migrar para os CMEC se o Estado não prolongasse o domínio hídrico das 27 barragens.

As condições suspensivas estavam plasmadas nos mails trocados, referiu. “Quando se assina em 2005 e isso já estava previsto no decreto-lei de 2004. Para mim essas condições suspensivas não foram novidade de todo”. Sobre uma decisão que nenhuma das pessoas ouvidas até agora — ex-gestores da EDP e antigos assessores e governantes — assume ter tido conhecimento ou negociado, Vítor Batista referiu ainda: “Julgo que nas condições suspensivas, a EDP estava a exercer o direito de opção de continuar a explorar as barragens por mais 25 anos que lhe foi dado”. O Estado perdeu esse direito, concluiu. A REN, comunicou a sua posição sobre essa alteração do quadro legal, mas terá sido uma decisão do Estado.