Imagine este cenário: uma família sentada à mesa de jantar com a televisão ligada num telejornal, quando entra uma peça sobre o caso da acusação feita por uma norte-americana de que o jogador português a terá violado. E uma das crianças pergunta: “O que é que o Ronaldo fez?”

O cenário, que se torna bastante provável à medida que o caso se mediatiza mais, pode bem acontecer. E, num momento desses, o que devem os pais fazer: mudar de canal, desviar o assunto ou falar sobre o tema com os filhos? E se sim, como devem fazê-lo?

O Observador falou com três especialistas — uma psicóloga, um pediatra e uma especialista em Ciências da Educação — que tentaram dar algumas pistas sobre como lidar com um caso mediático, que envolve uma figura pública muitas vezes vista como um herói pelos mais novos e agora retratada a uma luz mais negativa. Temas como a sexualidade, o consentimento e a noção de equilíbrio podem ser vistas e discutidas com uma nova abordagem, garantem. Mais difícil é abordar questões como a Justiça, a dimensão de um crime como a violação e a presunção de inocência. O mais importante, dizem, é que o momento possa ser usado como catalisador para pais e filhos se ouvirem.

Fugir do assunto é o pior remédio

Para a psicóloga Raquel Martins Ferreira, os pais não podem enterrar a cabeça na areia. “Na minha opinião, mudar de canal é colocá-los numa redoma de vidro”, começa por explicar. “Infelizmente os jornais abrem com notícias menos positivas, mas eu enquanto mãe ou pai, sei que a probabilidade de isso acontecer é grande e tenho de estar preparada para lidar com isso. Se eu mudar de canal, o que vai acontecer? Normalmente o fruto proibido é o mais apetecido. E ele tem recursos — o telefone, o tablet, o computador… — para ir procurar que notícia era aquela e tirar as suas conclusões sobre isso.”

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O médico pediatra Hugo Rodrigues, autor do livro e do site “Pediatria para todos”, não tem dúvidas em afirmar que assuntos deste tipo “devem ser discutidos sempre que surgem”. “Ignorar o assunto pode ser perverso, porque pode implicar uma desvalorização, pelo que me parece sempre a pior opção”, reforça o pediatra.

Já Isabel Abreu Lima, professora na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação do Porto recomenda, antes de tudo, “bom senso”. “Não há um manual” para falar sobre estas coisas, explica.

Se uma criança pergunta aos pais, acho sempre que eles devem responder. Dentro da capacidade de entendimento da criança, sem criar zonas de desconforto e tendo a noção de que não há um totalmente certo nem errado. O mais importante é que haja comunicação entre pais e filhos.”

Para dar início à discussão, a psicóloga Raquel Martins Ferreira sugere que os pais comecem não com “um sermão”, mas sim lançando uma pergunta à criança ou ao adolescente, como “o que achas disto?”. “Isso dá-nos a noção do conhecimento que ela tem, se há consciência sobre o assunto, etc. Não vale a pena tentar esconder a informação, é impossível. Pelo contrario, é tentar perceber o que aquela criança ou adolescente sabe sobre este tema.”

A partir de que idade se pode falar sobre as questões sexuais?

Falar com os mais novos não significa, contudo, conversar da mesma maneira que se trocam impressões sobre o assunto com o cônjuge, com os amigos ou com os colegas de trabalho. Os pais devem avaliar o grau de maturidade dos seus filhos e orientar o grau de detalhe da conversa consoante isso: “É muito difícil apontar uma idade, porque depende. Há crianças com 10 anos com quem conseguimos ter uma conversa estruturada e q.b. ‘acima’ da idade que ela tem. E há outras com 12, 13, 14 anos, que não têm esse nível de estruturação”, aponta a psicóloga.

As questões mais ligadas à sexualidade, essas, podem sempre fazer parte, dizem os três especialistas. Desde que devidamente enquadradas e adaptadas, por vezes sem ir além do que foi estritamente perguntado. “Recebo muitos pedidos de ajuda de pais que não sabem como responder a perguntas dos filhos. ‘Uso a história das cegonhas, por exemplo?’, perguntam”, ilustra a psicóloga. “Devemos responder objetivamente à pergunta, de uma forma sincera e honesta e não tão estruturada. Aos 3, 4 anos, podemos falar numa ‘questão de amor’, ‘uma coisa feita entre adultos’, etc.”

Ronaldo, capitão da Seleção Nacional, é um ídolo para muitas crianças (Dean Mouhtaropoulos/Getty Images)

O pediatra Hugo Rodrigues também concorda que os temas relacionados com a sexualidade podem sempre ser abordados, desde que adaptados à maturidade de cada um. “Para as crianças mais pequenas, é fundamental ensinar o respeito pelos outros e a necessidade de não fazer mal a quem nos rodeia  — é ainda mais importante não fazer mal do que fazer bem.”

Outro conceito importante é ensinar a não se expor e não permitir que ninguém toque em determinadas partes do corpo, porque isso lhes vai dar armas para poderem lidar melhor com este tipo de situações”, ilustra o médico.

Em crianças mais velhas, já em idade escolar, o pediatra aconselha a que se reforcem ideias como a de que “a nossa liberdade não deve nunca colidir com a liberdade dos outros e que nunca se deve forçar ninguém a fazer algo que não quer”, incluindo o que diz respeito ao nosso corpo e ao dos outros. E o pediatra crê que o momento pode servir para educar no que diz respeito a um crime como a violação: “É importante explicar que todas as atitudes que impliquem mais do que uma pessoa devem ser consentidas por ambas, sejam de que cariz forem. Deve-se também reforçar a ideia de que o corpo é algo privado e que a observação ou contacto corporais só devem acontecer quando há vontade mútua.”

Para Isabel Abreu Lima, o mais importante mesmo é responder às questões, caso as crianças façam perguntas diretas: “Mesmo que seja preciso dourar a pílula, se for caso disso, e não usar linguagem completamente sexual para os mais novos. Por exemplo pode-se antes falar em comportamentos ‘corretos’ e ‘incorretos’“, diz. “Deve ser-se tão verdadeiro quanto possível, mas não temos de ser completamente transparentes. Um pai que tenta adequar a realidade ao momento em que está o seu filho está a fazer bem”, acrescenta.

No caso dos adolescentes, a conversa pode tornar-se mais detalhada. A psicóloga Raquel Martins Ferreira reforça que este pode ser um bom momento para discutir matérias como “o consentimento” ou a necessidade de usar proteção e o médico Hugo Rodrigues deixa um conselho: “Deve tentar-se explicar a sexualidade de uma forma positiva, como uma fonte de prazer, mas que deve ser usufruída em segurança. E, se possível, de forma planeada.”

Lembrete: os ídolos também erram — mas a Justiça deve ser igual para todos

“É muito importante haver um espaço de comunicação e partilha e conseguirmos falar sobre os temas como estes das figuras de referência — seja o Cristiano Ronaldo, seja um cantor, seja um youtuber“, acrescenta Raquel Martins Ferreira. “É preciso perceber ele se identifica com aquela pessoa e a partir daí entender que há sempre dois lados de uma historia e que é importante não fazer um julgamento precipitado.”

Esse sentido de equilíbrio, explica a psicóloga clínica, já foi muitas vezes alcançado com trabalho prévio. “Por exemplo: a criança vem com um recado da escola por mau comportamento e os pais sentam-se e perguntam: ‘o que é que aconteceu? qual é a tua versão dos factos?’. Se um pai ou uma mãe faz isto, a criança cresce com o pensamento de que é importante dar o beneficio da duvida e pensar nas coisas com uma questão de perspetiva”, afirma, sublinhando que, enquanto sociedade, “estamos muito prontos a atacar e pouco a tentar perceber.”

Isabel Abreu Lima reforça que, independentemente da veracidade da acusação ou não, é importante “não deitar abaixo completamente a figura de um herói”, até porque, diz, Cristiano Ronaldo representa outros valores positivos, como o apoio humanitário ou a importância do apoio familiar. O caso, diz, pode servir para ajudar a compreender que “as pessoas não são perfeitas” e que “até o melhor do mundo erra”. “É uma figura pública, mas não é o Super Homem”, resume.

A mensagem que podemos deixar [aos filhos] é a de que até as melhores pessoas do mundo fazem erros — o importante é que os corrijam para não deixar ninguém magoado.”

O sucesso do futebolista, jogador da Juventus e estrela planetária, torna o caso da alegada violação particularmente mediático (ISABELLA BONOTTO/AFP/Getty Images)

O assunto pode servir, inclusivamente, para combater posturas menos saudáveis dos mais novos face aos seus ídolos, com comportamentos de endeusamento. “Às vezes é uma coisa muito exaustiva. As crianças, por exemplo, que vão até ao aeroporto receber os jogadores e depois ficam a chorar compulsivamente por não terem conseguido um autógrafo… Não sei até que ponto isso é saudável”, reflete Raquel Martins Ferreira. “Estamos perante uma figura de referência, que tem coisas positivas, mas que também é um ser humano e que também erra. O mais importante é [as crianças] perceberem que as atitudes devem ter consequências para toda a gente.”

O pediatra Hugo Rodrigues resume toda a discussão em três simples frases: “O princípio da presunção da inocência gere a nossa Justiça e deve ser ensinado. No entanto, convém sempre explicar que a Justiça deve ser igual para todos, independentemente do seu estatuto ou poder económico. Aliás, é muito importante dar essa dimensão ‘humana’ aos ídolos, porque os torna mais ‘reais’.

A falar é que a gente se entende

O mais importante, sublinham os três especialistas, é que haja linhas de comunicação entre pais e filhos. “Não vejo este assunto como sendo diferente dos outros. Confrontados com telejornais que mostram tudo, por vezes de forma incorreta, é muito importante que os pais tenham este papel”, afirma Isabel Abreu Lima. “Mas os pais têm de ter padrões, têm de ter ideias de para onde vão e qual é o intuito pedagógico da conversa.”

Muitas vezes, explica a psicóloga Raquel Martins Ferreira, são os próprios filhos a dar sinais de que querem abordar determinado assunto. “Não vale a pena puxar temas para cima da mesa”, declara.

Eles dão-nos pistas sobre se estão ou não preparados para falar sobre os temas e fazem perguntas. Cabe aos pais entender os sinais, potenciar essa conversa, criar esse espaço de comunicação e não julgar. Depois, obviamente que a estruturação da conversa, os termos utilizados, etc., variam consoante a idade.”

Um caso como este que agora envolve Cristiano Ronaldo pode servir de catalisador para discutir temas como a agressão sexual, a Justiça ou a presunção da inocência. “Todos estes casos mais mediáticos devem ser aproveitados para se falar sobre eles e incutir alguns princípios e valores as crianças”, resume o pediatra Hugo Rodrigues. Focando não necessariamente sobre o caso em si, mas aproveitando-o para falar e ouvir os seus filhos sobre temas mais profundos, relacionados com valores, ética e moral — temas que, geralmente, vão sendo abafados pelas preocupações mais mundanas do dia-a-dia.

“Os pais devem aproveitar estes momentos para entrarem no universo dos filhos e perceberem o que eles acham sobre as coisas” resume Isabel Abreu Lima. “São questões que tocam no comportamento, nas relações entre homens e mulheres e nas relações entre pessoas em geral. Podemos sempre pegar nisto da forma que considerarmos mais adequada.”