Aos 86 anos, Jean-Paul Rappeneau é um dos mais distintos e consagrados realizadores franceses, apesar de ter feito apenas oito filmes em meio século de carreira. Mas que filmes: entre eles constam “Escândalo no Castelo” (1966), com Philippe Noiret, Catherine Deneuve e Pierre Brasseur, “Os Noivos da Revolução” (1971), com Jean-Paul Belmondo, Marlène Jobert e Laura Antonelli, “A Vida é uma Festa”, com Yves Montand e Isabelle Adjani (1982), ou “Cyrano de Bergerac” (1990), com Gérard Depardieu, cuja cópia restaurada o realizador veio apresentar na abertura da 19ª Festa do Cinema Francês (de que é o Padrinho este ano), e já está em reposição nas salas portuguesas. A Festa mostra ainda mais quatro das suas fitas, as citadas “Escândalo no Castelo” e “Que Famílias!”, mais “Meu Irresistível Selvagem” e “Boa Viagem”.

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Vencedor de um Prémio Louis Delluc e de três Césares, Rappeneau foi argumentista de Louis Malle, Alain Cavalier e Philippe De Broca. É um realizador de um perfeccionismo a toda a prova, incluindo-se na tradição do cinema francês clássico e de qualidade feito no seio da indústria e pertencendo àquele grupo cada vez mais raro de cineastas cujos conseguem agradar quer ao grande público, quer aos cinéfilos mais exigentes com o que vêem. O seu filme mais recente é a divertidíssima, movimentadíssima e autobiográfica comédia dramática “Que Famílias!” (2015), onde dirigiu Mathieu Amalric, Gilles Lellouche, Nicole Garcia, Marina Vacth e André Dussolier. O Observador falou com Jean-Paul Rappeneau em Lisboa.

“Cyrano de Bergerac” é um dos seus filmes favoritos?
Sim, mas só o foi no final. Tive muito medo antes porque estava convencido – no princípio, quando o filme me foi proposto, porque não era um projecto meu – que não se podia fazer cinema com uma peça antiga e, julgava eu, muito poeirenta. E durante toda a rodagem estava sempre a pensar se o cinema ia conseguir apoderar-se desta velharia, se a linguagem cinematográfica podia tomar conta deste texto. E precisamente, talvez que esse medo todo que senti tenha acabado por me dinamizar e conseguir concretizar uma aposta que muita gente achava impossível, ao princípio. Até o meu filho mais velho me dizia que o “Cyrano de Bergerac” ia ser um suicídio. No fim, tinha conseguido vencer esse medo e da primeira vez que vi o filme, descobri que funcionava. Foi uma satisfação.

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A verdade é que conseguiu pegar numa peça de teatro e dar-lhe uma respiração cinematográfica.
Sim, e que não estava lá.

Além disso, fez com que a peça ganhasse uma dimensão de filme histórico e de aventuras, que é um género clássico do cinema francês.
Também penso isso. Havia um argumento de cinema escondido na peça. Quando olhamos bem para ela, descobrimos lá um filme de aventuras, que tem uma aventura interior, a de Cyrano, e outra exterior, toda a sua envolvência.

Vi no YouTube uma entrevista que deu recentemente, e onde lhe fizeram a pergunta inevitável: porque é que faz tão poucos filmes, só oito em 50 anos? Respondeu citando Malraux: “Cada pintor tem o seu formato”. Podemos dizer também que cada realizador tem o seu ritmo, e o seu é assim, muito pausado? Gosta de preparar os filmes longa e metodicamente?
Enquanto não tiver encontrado um ritmo, as coisas não funcionam. Isso sucedeu com o “Cyrano de Bergerac”, o ritmo não está na peça, tive que o encontrar para o filme, e os versos alexandrinos do Edmond Rostand ajudaram-me a fazê-lo. Eu digo sempre que enquanto não me ponho a bater o pé, as coisas não funcionam. E se não me estou a mexer quando os actores estão a ensaiar, idem. E eles sabem-no. Há actores que se sentem incomodados se me vêem mexer durante as filmagens. O Philippe Noiret, por exemplo, dizia-me, “Pára de te mexer!”. Por outro lado, o Gérard Depardieu, na rodagem do “Cyrano de Bergerac”, parou mesmo no meio de uma tirada e eu perguntei-lhe porquê. E ele respondeu: “Porque tu paraste de te mexer.”

É um cineasta de uma categoria cada vez mais rara. Os seus filmes conseguem agradar ao chamado “grande público”, mas também a uma minoria cinéfila, mais exigente e mais difícil de satisfazer. Tem noção disso?
Estou de acordo. Costumo dizer que sou um espectador que faz filmes, e filmes que gostava de ver. Mas não costumo pensar em que os irá ver. Quando o meu primeiro filme, “Escãndalo no Castelo”, se estreou em 1966 – um filme que fiz porque gostava da história -, teve um enorme sucesso em França e ganhou o Prémio Louis Delluc, fiquei surpreendido. Ou seja, tal como a história do filme me tinha agradado, também agradou às pessoas. E pensei o meu último filme, “Que Famílias!”, como é um conjunto de pequenas histórias que me aconteceram quando era novo, um filme mais pessoal, autobiográfico, mesmo, e passado na província e não em Paris, não ia funcionar. Mas isso não sucedeu, foi o contrário.

Disse também que quando faz um filme, se sente num “mini-mundo”. Pode-me explicar o que é esse “mini-mundo”?
É como estar numa vida paralela. Nunca me aconteceu acabar um filme já com a ideia do próximo em mente. Acho tal coisa inconcebível. Sinto-me como um tipo que caiu de um comboio, e que fica à beira da linha, a recuperar, enquanto o comboio segue o seu caminho. Retomo então a minha vida normal, pouco a pouco, regresso ao mundo real, com a família, os amigos, a casa que construí na Bretanha.

Como é que lhe surge a ideia para um filme?
Aparece-me, como uma visão. Há um momento em que entrevejo uma ideia, e depois começo a ver as personagens nos actores com quem falo. Recentemente, estive com um actor que até começou a interpretar a personagem enquanto lhe estava a contar a ideia da fita. Pouco a pouco, as coisas vão-se desenvolvendo e quando me meto ao trabalho, é para durar os três próximos anos, e aí fico como louco. Só penso no filme, fico obcecado. Posso passar horas a discutir a cor de uma mesa que vai ser usada numa cena. Em “Que Famílias!”, há uma conferência em Londres, em redor de uma mesa oval. Chegámos lá para filmar e não havia mesa oval, era redonda e enorme. E como íamos rodar num hotel, não lhes podia pedir para cortar a mesa. Por isso, disse ao meu assistente para perguntar à gerência se me vendiam a mesa, para a poder serrar. Tomaram-me por maluco, claro. Finalmente, arranjei uma solução visual para filmar a cena como queria. Mas antes, andei como louco, até cheguei a pôr a hipótese de cancelar o filme. Depois acalmei-me e lá chegámos a essa solução.

Dá muita importância à escrita na preparação do filme? É daqueles realizadores que chega ao “plateau” com o argumento fechado e não mexe nem numa vírgula?
Escrevo os meus argumentos com a maior precisão possível, e faço muitas versões. Ajuda muito estar tudo preparado quando chegamos à rodagem. Sou muito meticuloso, ando sempre com um metro desdobrável no bolso, para que esteja tudo certinho e no seu lugar durante as filmagens.  Faço também uma “découpage” muito rigorosa, desenho cada plano, com o sítio em que estão as coisas, com as posições e a movimentação dos actores, etc.. Na rodagem de “O Hussardo no Telhado”, a Juliette Binoche viu esses desenhos, ficou pasmada e disse-me: “Mas está aí desenhado tudo o que eu tenho de fazer. O que é que me sobra para fazer, colorir os bonecos?” Claro que o actor é que traz a vida a esses desenhos. Sem ele, nada feito, o filme não existe, não tem vida.

Dirigiu alguns dos maiores actores e actrizes do cinema francês: Belmondo, Montand, Noiret, Depardieu, Deneuve, Adjani, Binoche, etc. Teve boas experiências como todos eles?
Ah, sim, sim. O Gérard Depardieu, por exemplo, é como um irmão para mim. Comecei por ter uma relação difícil com o Yves Montand quando fizemos o “Meu Irresistível Selvagem”, em 1975. A rodagem não foi pacífica, discutimos um bocado, mas depois de ver o filme passou a ser ele que queria rodar comigo a todo o custo, e filmámos a seguir o “A Vida é uma Festa”. Não tenho más recordações de nenhum actor. Gosto dos actores. É preciso gostarmos deles, em especial das actrizes, o que aliás é mais fácil. Acho que até nos podemos apaixonar pelas actrizes, depois é mais fácil filmar com elas. Melhor: é obrigatório apaixonarmo-nos por elas durante a rodagem. Depois, cada qual vai á sua vida. E os actores que são ultra-sensíveis sentem quando gostamos deles. Eu sou o primeiro espectador dos meus filmes, e por isso até aplaudo os meus actores quando acabo de rodar uma cena. Por vezes, levanto-me e vou abraçá-los. É muito importante para eles, recarrega-lhes as baterias, motiva-os.

Acha que há um tema recorrente, um motivo comum a todos os seu filmes, ou que pelo menos ligue alguns deles? O facto dos seus filmes serem todos muito romanescos, por exemplo?
Há muitas coisas ligadas á minha infância, ao meu amor pelos primeiros livros que li, ao facto de que vivia numa casa com um grande jardim. Há esse tema da casa, uma casa grande, sempre, nalguns filmes. Aliás, uma das minhas peças favoritas é “O Cerejal”, de Tchékhov. Há sobretudo muitas sensações que eu vivi, muitas alegrias e tristezas, e particularmente da infância. Há muito pouco da minha vida adulta nos meus filmes. E tenho sempre muitas personagens que se relacionam de forma intensa umas com as outras, essa dimensão romanesca de que fala.

Sente-se parte de alguma tradição ou de alguma escola do cinema francês? Ou é um individualista?
Nunca tive nada a ver com a Nova Vaga e o seu tipo de cinema, apesar de ser amigo de todos os realizadores que a compuseram. Sinto-me mais próximo do Jean Renoir, por exemplo. E gosto muito do Max Ophuls, sobretudo dos filmes franceses dele. Do Jacques Becker, também. É um dos meus realizadores favoritos.

Já teve uma visão para o seu próximo filme?
Sim, tive, existe um novo projecto de filme. Mas ao mesmo tempo estou a escrever um livro onde conto um pouco a minha vida, é autobiográfico, e tenho que o terminar. Estou hesitante entre qual deles privilegiar, mas vai acabar por ser o filme. É que o livro já vai bastante adiantado. Enfim, filme ou livro, é um pequeno dilema que resolverei no final deste mês.