Quase duas semanas depois das suspeitas contra Cristiano Ronaldo terem sido notícia em todo o mundo, e de a polícia de Las Vegas ter decidido reabrir o processo do alegado abuso sexual de Kathryn Mayorga, mantêm-se as dúvidas sobre que passos, em rigor, vai dar a justiça norte-americana — e Cristiano Ronaldo continua no centro de um furacão. Ainda esta quarta-feira, o advogado que vai defender o jogador emitiu um comunicado onde afirma que “os documentos que supostamente contêm declarações do Sr. Ronaldo e foram reproduzidos nos media são puras invenções” e que, apesar de o avançado português não negar a celebração de um acordo, “as razões que o levaram a fazê-lo estão, no mínimo, a ser distorcidas”.

O internacional português poderá vir a responder por um crime de violação, que terá acontecido em junho de 2009. Os novos elementos entregues pela defesa da queixosa à polícia deram corpo a uma investigação que tinha parado na altura. São vários os caminhos que, agora, podem ser seguidos, mas o que aconteceria se o alegado crime tivesse acontecido em Portugal?

Advogado de Ronaldo diz que documentos divulgados sobre a acusação de violação são “puras invenções”

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Queixa

Sendo a violação em Portugal um crime semi-público, o direito a queixa prescreve num prazo de seis meses depois dos factos. Kathryn Mayorga apresentou queixa no dia seguinte à alegada violação, o que significa que, tal como lá, seria sempre admitida. Se tivesse falhado o prazo estipulado pela lei portuguesa, já não teria uma segunda oportunidade.

Arquivamento vs. Reabertura

Feita a queixa e, imaginando que o processo era arquivado, a alegada vítima teria dois caminhos para manter o caso. Por uma lado, poderia avançar com a abertura de instrução, discordando da opção tomada pelo Ministério Público e forçando uma acusação particular: “Nos 20 dias seguintes ao arquivamento, ela poderia apresentar novos factos ou alegar que o processo não tinha sido conduzido da melhor forma”, explica ao Observador Leonor Monteiro, advogada com experiência em casos de violência de género.

Não foi, já se sabe, o que aconteceu em Las Vegas. Além de nos Estados Unidos muitos processos serem resolvidos pela via negocial e através de acordos, Kathryn Mayorga fez um acordo com o alegado agressor, mas, nove anos depois, recorreu a uma outra possibilidade também permitida em Portugal: apresentou novos dados e provas, que justificaram a reabertura da investigação pela polícia de Las Vegas.

Por cá também poderia acontecer: a reabertura do inquérito com base em novos elementos seria uma possibilidade, mesmo tendo passado 9 anos desde os factos porque, neste caso, seriam precisos 10 anos para o inquérito prescrever. “Se o Ministério Público considerasse que as provas eram importantes e que deviam levar à reabertura do inquérito, estando ele no prazo, o MP poderia reabrir o processo. Se está dentro do prazo, a vítima tem todo o direito de andar com a queixa para a frente”, continua Leonor Monteiro. O que interessa, do ponto de vista legal no ordenamento jurídico português, é apresentar a queixa original nos primeiros seis meses e fazer tudo o resto dentro do prazo de prescrição.

Artigo 118.º do Código Penal Português

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1 – O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

a) 15 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos ou dos crimes previstos nos artigos 335.º, 372.º, 373.º, 374.º, 374.º-A, 375.º, n.º 1, 377.º, n.º 1, 379.º, n.º 1, 382.º, 383.º e 384.º do Código Penal, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, 4/2011, de 16 de fevereiro, e 4/2013, de 14 de janeiro, 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, e 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, e ainda do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção;
b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;
d) Dois anos, nos casos restantes.

http://bdjur.almedina.net/citem.php?field=item_id&value=1172694

A reabertura seria sempre uma decisão do Ministério Público, caso considerasse a nova informação relevante. Depois, os procuradores tinham dois caminhos: ou arquivavam, por concluírem que as provas não eram suficientes, ou avançavam com uma acusação contra o principal suspeito. Para isso, “Cristiano Ronaldo poderia ser constituído arguido e o inquérito decorreria com todas as diligências consideradas pertinentes” para determinar o que aconteceu, diz Leonor Monteiro. Como arguido, o atleta teria de ser ouvido pelas autoridades para prestar declarações — o que poderia acontecer por videoconferência, ainda que também fosse possível a sua deslocação a Portugal. “Convinha ao advogado dele estar em Portugal. Há procuradores do Ministério Público que querem a presença das pessoas para serem constituídas arguidas. Depende muito do procurador”, continua a advogada consultada pelo Observador.

Acusação

Feitas todas as diligências, e caso o Ministério Público considerasse que os elementos reunidos eram fortes e decidisse avançar para uma acusação, a defesa de Ronaldo poderia tentar ainda a fase de instrução para evitar o julgamento. A abertura de instrução serve para que um juiz de instrução olhe para os factos e, depois de um debate instrutório — uma espécie de pré-julgamento — decida se o caso tem pernas para  andar e seguir para o julgamento efetivo por um outro juiz. Nessa fase, os advogados do futebolista tentariam fazer cair o caso, apresentando argumentos, dados ou testemunhas para contrariar a tese do Ministério Público. O juiz de instrução decidiria depois pela “pronúncia” (que faria o caso seguir mesmo para julgamento) ou pela “não pronúncia”.

“Não havendo pronúncia, ele não é levado a julgamento. É como se o processo tivesse sido arquivado. Nessa situação, ainda assim, a vítima ainda pode recorrer a um tribunal superior.”

Crime de violação na lei portuguesa

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O crime de violação implica um ato sexual de relevo com penetração. No ponto número 1 do artigo 164º do Código Penal entende-se que constitui violação “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos. O crime é punido com pena de prisão de três a dez anos. Já no ponto 2 do mesmo artigo lê-se que os mesmos atos realizados por formas não compreendidas no número anterior são punidos com uma pena de prisão de 1 a 6 anos.

O eventual julgamento seria semelhante a todos os outros. Cristiano Ronaldo teria de estar presente, pelo menos na primeira sessão. Depois, poderia pedir ao coletivo de juízes para ser dispensado de estar nas audiências seguintes, alegando a necessidade de estar noutro local por causa do trabalho ou questões familiares, por exemplo. Podia também pedir ao juiz para que o julgamento avançasse à porta fechada, alegando o direito à reserva da intimidade da vida privada. E, se assim fosse, só a leitura da sentença seria pública.

Penas possíveis

Em Portugal, a violação é um crime contra a autodeterminação sexual, explica ao Observador o advogado Miguel Matias. Significa este princípio da autodeterminação que: “Eu sou uma mulher ou um homem e tenho o direito de ir para um quarto com quem quiser”, explica o advogado. Segundo o Código Penal, a prática do crime consiste em atos sexuais de relevo que compreendem a penetração, de uma pessoa para outra, sem consentimento, em que é utilizada “a ameaça, a coação, a violência ou qualquer outro meio” (estes atos são punidos com uma pena de prisão que pode ir dos 3 aos 10 anos). Se a violação não tiver implicado o uso de violência ou coação sobre a vítima, a moldura penal aplicada é de 1 a 6 anos.

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Acordo de confidencialidade

Uma das razões pelas quais a investigação em Las Vegas não avançou, na altura em que foi feita a queixa, está relacionada com o acordo de confidencialidade extrajudicial celebrado entre Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga, no valor de 375 mil dólares. Por cá, nenhum acordo poderia, por si só, pôr fim imediato a um procedimento criminal.

Em primeiro lugar, como explica Miguel Matias, essa negociação extra-judicial só está prevista para alguns tipos de crimes, como os crimes particulares (por exemplo, um crime de difamação). No caso dos crimes semi-públicos (como é o caso de violação, uma vez que exige a existência de uma denúncia), também é possível, mas apenas numa fase inicial do processo e se for acompanhado de duas comunicações formais: a da desistência da queixa, por parte da alegada vítima, e a da aceitação da desistência da queixa, por parte do arguido. Caso isso fosse feito, “passados 30 dias, a queixosa já não poderia reabrir o caso”, acrescenta o advogado.

[Veja o vídeo sobre a batalha de advogados na acusação contra Ronaldo]

Violência, dissentimento e capital social do agressor

Nos documentos a que a revista Der Spiegel teve acesso, Cristiano Ronaldo é citado a dizer que, durante o ato sexual com Kathryn Mayorga, foi “rude” e que esta terá dito “não” e “pára” mais do que uma vez. Se isto se tivesse passado em Portugal, defendea jurista Isabel Ventura, haveria jurisprudência e doutrina para considerar existência de violência, sendo que o contrário, a não existência de violência, também seria admissível. “Para alguma jurisprudência, provavelmente seriam precisas mais provas de violência e da consequente resistência da parte da vítima. Dizer ‘não’ no contexto em que é dito pode não ser suficiente para que haja uma manifestação clara de rejeição, é preciso haver uma reação física”, explica a docente convidada na Escola de Direito da Universidade Católica do Porto, onde coordena o seminário de mestrado “Direito e Género: o caso dos crimes sexuais”, ao Observador.

Já antes Isabel Ventura, autora do livro “Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual”, tese de doutoramento que explora a forma como o sistema judicial português tratou e trata os crimes sexuais, conversou com o Observador sobre como o crime de violação, consagrado na lei portuguesa, pode não considerar a questão do consentimento:

[É preciso] que a violação não seja um crime apenas centrado na violência, na ameaça grave ou na incapacidade de resistir — aliás, o facto de estar na lei o crime de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistir”, significa que as outras têm de ser capazes de resistir. Mas, além disto, na minha perspetiva, deveria ser explícito que o crime se baseia no dissentimento da vítima, isto é, na falta de consentimento. É fundamental que todas as pessoas envolvidas [num processo de violação], dos agentes aos oficiais de justiça, incluindo o Ministério Público, estejam informadas quanto aos processos típicos de vitimação e em relação às reações típicas que muitas vezes se afastam diametralmente dos estereótipos que temos.

Isabel Ventura. “Se o La Manada acontecesse em Portugal as ruas não ficariam cheias”

Quanto ao desenho do perfil do alegado agressor, que é sempre tido em conta em conjugação com os outros elementos probatórios reunidos (ou não) pela investigação, cá como nos Estados Unidos seguiria, provavelmente, as mesmas linhas. Cristiano Ronaldo, enquanto “figura pública amada”, tem capital erótico (é jovem) e capital de estatuto social (é milionário). Tudo isto, afirma Isabel Ventura, vai contra os estereótipos do agressor. “Cristiano Ronaldo afasta-se muito da figura do agressor. Uma acusação é sempre avaliada considerando quem a faz e quem é acusado. Se ela estivesse a acusar outra pessoa que não fosse amada, mais facilmente a queixa dela seria acreditada.”