As manequins chegaram, uma após a outra, vestidas de negro. À quarta, as suspeitas confirmavam-se: David Ferreira, designer português da plataforma LAB, concebeu uma primavera sombria, colorida a um único tom, o preto. A paleta monocromática não era assim tão difícil de prever. O criador partiu de Grey Gardens, documentário de 1975 que entrou na casa (e no quotidiano) de duas mulheres. Outrora pertencentes a uma elite social, as câmaras dos realizadores Albert e David Maysles encontraram um cenário decadente, decrépito até. As glórias e ao fausto de outros tempos já só existiam dentro das cabeças de mãe e filha, ambas com o nome Edith Beale. O que para um expectador comum seria apenas o retrato de uma vivência bizarra, para David Ferreira foi uma fonte de inspiração há muito predestinada a servir de ponte de partida para uma coleção.
“De repente, eles vão filmar a história de uma casa e deparam-se com duas mulheres em decadência, mas que acham que ainda são maravilhosas. Usam pelo a cair de podre e mostram quadros maravilhosos, enquanto aparecem ratos e raccoons [guaxinins]. Encontrei essa beleza na tristeza e na miséria, na elegância que elas ainda conseguem ter”, explica David Ferreira ao Observador, minutos após o desfile. “Chama-se Grey Gardens, não podia pô-las em azuis ou em rosas. Já queria fazer esta coleção há muito tempo e, quando comecei, fazê-la toda preta foi, simplesmente, um processo orgânico”, acrescenta.
Poison, música interpretada por CocoRosie e Antony Hegarty, serviu de banda sonora, do princípio ao fim do desfile. O compasso foi lento, as silhuetas mantiveram-se esguias, ora com peças com corte de sereia, ora com blazers-vestidos curtos. De maquilhagem preta carregada nos olhos e cabelos amarrados ao pescoço, as modelos caminharam em puro drama. Se, por um lado, o assentar fino de um vestido no corpo, a delicadeza da organza e do chiffon de seda e a exuberância dos folhos e godé evocaram a vida glamorosa do passado, os valores de costura virados para fora, criando, por vezes, um efeito de patchwork, e os jogos de transparências que deixaram visível o esqueleto das peças remeteram para a decadência do presente. “É como se o vestido se estivesse a deformar”, esclarece o criador.
David Ferreira apresenta-se na ModaLisboa desde março de 2016. Na altura, mantinha-se como presença assídua na Semana da Moda de Londres, cidade onde deu os primeiros passos enquanto marca. Hoje, com atelier no centro de Lisboa, Portugal é só a base operacional. Do outro lado do Atlântico, sem querer deixar a cantora Björk de lado, as suas peças estão, como se costuma dizer, a causar. Tyra Banks, Janelle Monae, Janet Jackson, Cardi B, Christina Aguilera e Nicki Minaj já as vestiram e, na última semana, a cantora Poppy pisou a red carpet dos American Music Awards com uma criação do designer português.
Apesar da visibilidade internacional, a presença na ModaLisboa é para manter. Os trunfos de David lá fora são outros e não passam pelo formato de desfile. O showroom em Los Angeles vai fazer um ano e é lá que clientes, mas sobretudo stylists de celebridades, têm tido contacto com a marca. Em Paris, a dinâmica é a mesma. “Elas podem ir lá e ver as peças sem terem de faltar ao desfile da Chanel, o que nunca ia acontecer”, remata.
No mesmo dia e depois do Sangue Novo, outros dois criadores apresentaram as suas propostas para o próximo verão. Valentim Quaresma foi um deles, prolongando o negrume durante mais uns minutos. Na coleção, o designer viajou até às influências da art decó na arquitetura e da revolução industrial dos anos 20. A combinação de materiais nobres com matérias naturais ressaltou ao longo de desfile, com organza e brocados em contraste com madeira, latão, alumínio e âmbar.
A agenda desta sexta-feira, primeiro dia da 51ª edição da ModaLisboa, ficou completa com o desfile de Ricardo Preto. O pronto-a-vestir puro e duro do criador português quebrou o luto dos desfiles anterior, não só com cores acesas (a paleta de Ricardo Preto, praticamente, não deixou de fora nenhuma cor soalheira que nos possa ocorrer), mas também com padrões vibrantes, dos florais aos étnicos, dos gráficos às combinações de todos eles.
A ModaLisboa continua este sábado, dia 13 de outubro, no Pavilhão Carlos Lopes. No segundo dia, esperam-se os desfiles de Nuno Gama, que terá lugar no Museu Nacional de Arte Antiga, Alexandra Moura e Luís Carvalho, entre outros.
Na fotogaleria, veja imagens dos desfiles do primeiros dia de ModaLisboa.