A madrugada ia avançada quando António Ribeiro se deparou com o armazém em chamas. O homem que nasceu em Mouraz, no coração do Dão, ficou sem reação. Imóvel, sem saber o que fazer. Teriam as enormes labaredas consumido o stock de vinhos que fizera com tanta dedicação, projeto no qual investira quase duas décadas e era agora o sustento da família? Os segundos de desespero foram interrompidos pelo som de uma canção popular cujo nome a memória já apagou. O pequeno rádio que António jurara ter desligado antes de abandonar o armazém tocava sozinho, para lá do fumo e do fogo, numa frequência fora do habitual. O som vindo do interior da estrutura que ardia sem controlo despertou António e fê-lo apagar o fogo e salvar o que podia. Afinal, se a rádio tocava sem explicação, talvez nem tudo estivesse perdido.

Não é fácil esquecer o que aconteceu há precisamente um ano, já antes relatado pela revista Visão, naquele que ficou conhecido como “o pior dia do ano em termos de incêndios”. Sara Dionísio e António Ribeiro, marido e mulher e os fundadores do projeto vínico Casa de Mouraz, perderam grande parte do negócio para as chamas intensas que consumiram o armazém, parte do stock e muitas vinhas. De 15 para 16 de outubro de 2017, o fogo percorreu Mouraz, no concelho de Tondela, à semelhança do que aconteceu em grande parte do centro e norte do país. Quando o casal foi alertado para as chamas, já a estrada que dava acesso às vinhas e à casa de família, onde António nasceu, tinha sido cortada. Um ano depois, os produtores conseguem fazer as contas com mais precisão: feita a vindima, reconhecem que a perda de vinho foi muito superior a 50%.

“Este ano fizemos um quarto do que é habitual. Há videiras que sobreviveram ao fogo mas que ainda não conseguiram produzir uva. Temos três vinhas que ficaram abandonadas, ardeu tudo, e temos muitas parcelas onde o fogo chegou a algumas partes. Resta-nos plantar ou voltar a enxertar as videiras que estão mortas”, diz Sara Dionísio ao Observador. Hectares de vinhas moribundas, máquinas agrícolas destruídas e garrafas estaladas pelo calor do fogo fazem parte do cenário de destruição que, a pouco e pouco, o casal tem vindo a ultrapassar. Valeu-lhes o apoio do Ministério da Agricultura — ainda que, segundo Sara, os apoios para a agricultura sejam “muito menores” do aqueles destinados à indústria — e o projeto de crowdfunding lançado em dezembro: a plataforma permitiu reunir cerca de 35 mil euros em apenas dois meses. No discurso, Sara agradece a ajuda prestada, mas lamenta que ainda estejam longe de chegar ao meio milhão de euros em prejuízos.

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“Fora da plataforma, temos vindo a recorrer à nossa rede de contactos. Continuamos a pedir ajuda e tentamos assegurar algum tipo de retorno, seja em vinho ou em visitas à quinta, por exemplo. Já conseguimos algum dinheiro, não é o suficiente, mas é uma ajuda. É uma ajuda sobretudo do ponto de vista anímico. É bom ver que as pessoas se mostram solidárias”, continua Sara Dionísio. Desde os incêndios que a Casa de Mouraz tem andando nas bocas e nos textos de críticos de vinho — cá dentro e lá fora. A título de exemplo, no site da britânica Jancis Robinson, conhecida crítica, existem referências ao Elfa 2o13, vinho aí apelidado de “um autêntico tinto do Dão” e cuja maior parte da produção foi destruída pelo fogo. A notícia dos fogos que, além de terem destruído hectares com produção agrícola, ceifaram vidas também chegou à imprensa especializada internacional, incluindo a revista Decanter.

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Houve clientes que compraram garrafas em avanço — incluindo o norueguês que encomendou cerca de 3 mil unidades que só serão entregues dentro de dois ou três anos — e ainda um evento solidário em Londres, ligado ao crowdfunding, organizado pela plataforma The Portuguese Conspiracy.

Na terra ardida ainda à vista, há videiras em recuperação. Sara e António querem esperar por elas, a ver se renascem “das cinzas” de forma natural, não fossem eles produtores biológicos e biodinâmicos — o projeto Casa de Mouraz arrancou em 2000 quando o casal trocou Lisboa por Tondela (ele, com formação em Direito, foi fundador de uma revista de arte e ela chegou a ser professora de dança); o primeiro rótulo foi lançado em 2001 e no ano passado chegaram à meta das 100 mil garrafas, vinhos nascidos de castas tipicamente portuguesas (como as tintas baga e jaen ou as brancas encruzado e bical). No plano de reestruturação está ainda a reconstrução de um novo armazém, com a ajuda o programa REPOR.

Sara esclarece que vão precisar de alguns anos para repor a capacidade produtiva. Mas nem só de espera se faz esta segunda oportunidade para criar: o casal está a comprar terrenos nas redondezas para plantar vinhas novas e outras plantas que não eucaliptos, numa tentativa de evitar a repetição do que aconteceu há um ano. “À data, a primeira coisa em que pensámos é que isto era o fim. O meu marido ficou tão triste que, durante um mês, não conseguiu visitar as vinhas e a casa onde nasceu. Só depois começámos a ver que nem todas as vinhas estavam mortas e conseguimos salvar algum stock. Esta é uma nova oportunidade para fazer melhor.

Quinta do Outeiro, Mouraz, Tondela. Tel.:  232 822 053