Termina nesta quinta-feira aquilo que se iniciou com grande aparato na segunda: os testes com veículos autónomos em estradas portuguesas. Mas o que é mais nacional é a tecnologia que lhes permite “falar”, entre eles e com a infra-estrutura. Já lá vamos, porque se exige algum contexto.

Comecemos pelo que era para ser e não foi. Quando o Observador noticiou que, em Outubro, se iriam realizar testes com veículos com alguma automação em estradas portuguesas, estava previsto que esses testes se estendessem ao longo de duas semanas e que, em simultâneo, decorressem experiências em condições reais, quer em ambiente urbano, com shuttles autónomos concebidos pelo Instituto Pedro Nunes (IPN), quer num troço de 7 km da A9/CREL, entre os nós de Belas e Odivelas, com cerca de seis veículos. Confirmou-se o mês, mas não a simultaneidade das provas, com os ensaios citadinos a serem adiados para Fevereiro, uma vez que ainda decorrem negociações com a Câmara Municipal de Lisboa para fechar a localização definitiva. Uma demora que se prende, ao que nos disseram, com detalhes de ordem técnica, uma vez que os veículos em causa requerem um ângulo de viragem que não se enquadra com todas as artérias da cidade.

Mas os testes com veículos autónomos e instrumentados acabaram mesmo por acontecer. É certo que as duas semanas acabaram por ficar reduzidas a quatro dias e que nem todos os veículos previstos puderam comparecer à chamada em asfalto português. O que não impede que o saldo seja “francamente positivo”, para Pedro Serra, o engenheiro do IPN a quem coube coordenar a vinda deste projecto-piloto para Portugal.

O nosso país, a par de Espanha (Madrid) e França (Paris), está integrado no consórcio europeu Autocits, liderado pela Indra Sistemas SA, pelo que nestes quatro dias – e nos largos meses de trabalho que os precederam – foram muitas as entidades envolvidas neste projecto. Por uma simples razão: todos quiseram aproveitar para… aprender o que não sabiam.

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Para a Brisa, um dos parceiros desta iniciativa, os ensaios que durante quatro dias justificaram uma escolta de três veículos da GNR, “em condições protegidas”, assumem uma particular importância para “ um operador que já há mais de uma década tem vindo a investir em infra-estruturas inteligentes”.

Este projecto concilia três vertentes que são muito importantes para nós: a introdução do veículo autónomo no nosso dia-a-dia rodoviário; a conectividade, porque valorizamos a ligação entre os sistemas a bordo do veículo e a envolvente inteligente para a qual nós podemos contribuir, no sentido de criar um sistema de mobilidade autónoma; e a interoperabilidade de sistemas, o que é importantíssimo se considerarmos que o mercado dos veículos autónomos continuará a ser concorrencial, com ofertas diversificadas e com sistemas que não serão necessariamente iguais uns aos outros, embora tenham de garantir que funcionam no dia-a-dia com eficiência e segurança”, explicou o director de Comunicação da Brisa, Franco Caruso.

Por seu turno, Pedro Serra elege a conectividade como o maior dos desafios a ser posto à prova. E nisso, a Bosch tem uma palavra a dizer – em português.

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“O coração da condução autónoma está em Braga”

Com um orçamento de 2,6 milhões de euros, o objectivo último do projecto Autocits é “adaptar a norma a todos os centros de controlo de tráfego e infra-estruturas, para melhorar a interacção entre o veículo autónomo e toda a sua envolvente”. Isso significa que não só os carros têm de ‘falar’ uns com os outros, como têm de receber e transmitir informação à infra-estrutura, de modo a que cada automóvel autónomo receba atempadamente informação útil, que lhe permita agir em conformidade com a situação que tem pela frente e para a qual foi alertado. Numa palavra, chama-se a isto “comunicar”. O mais curioso, pelo menos para os portugueses, é que toda essa comunicação está a ser pensada em português.

O que estamos a testar é uma tecnologia desenvolvida em Braga, por uma equipa de engenheiros portugueses, que muito provavelmente fará parte dos veículos autónomos do futuro”, disse-nos Abílio Diz, do departamento de comunicação da Bosch. E foi mais longe, quando lhe pedimos para descrever o que efectivamente está em cima da mesa: “O coração da condução autónoma está em Braga.”

O ‘coração’ chama-se ‘Car-2-X’, o que é nem mais nem menos do que a tecnologia que habilita os veículos a comunicarem uns com os outros, bem como com a infra-estrutura. “Não é novidade”, dissemos nós, “até já foi testada nos Estados Unidos”. Ao que veio a derradeira confirmação: “É verdade. Estamos a trabalhar nisto há cerca de dois anos, mas houve uma altura em que o desenvolvimento não podia continuar circunscrito às fronteiras portuguesas e a um ambiente controlado. O core do desenvolvimento é feito em Portugal, mas procuramos explorar ao máximo sinergias que nos permitam fazer evoluir a tecnologia.”

O Observador teve oportunidade de, por duas vezes, seguir a bordo do veículo conectado da Bosch. Lá dentro, tirando o jornalista, seguiam três dos sete engenheiros que, em Portugal, estão a trabalhar para que os carros consigam ter as conversas que interessam. Só há mais dois, um na Índia e outro na Alemanha. Estão, eventualmente, tão longe quanto esta solução está de chegar à versão comercial. Sobre quando é que isso vai acontecer, ninguém arrisca. “Ainda estamos em desenvolvimento”, ressalva Abílio Diz, sem avançar quaisquer previsões.

Semelhante cautela tem outra das entidades envolvidas neste projecto, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR). Segundo o seu presidente, Jorge Jacob, “os 6 milhões de veículos portugueses não vão ser autónomos de uma hora para a outra”. Haverá necessariamente uma fase de transição mas, antes disso, tem de haver uma alteração do enquadramento legal. “A convenção de Viena terá de ser alterada e creio que a legislação se irá adaptar a nível global.” Segundo o presidente da ANSR, “ainda estamos longe disso, porque se trata de apurar responsabilidades em caso de acidente, o que envolve necessariamente as seguradoras, certificação de veículos, de software, das próprias infra-estruturas e o relacionamento destas com o veículo”.

Um “coche” autónomo à espanhola

O veículo autónomo mais evoluído presente nesta sessão de ensaios em Portugal foi desenvolvido pelo Instituto Universitário de Investigação do Automóvel (INSIA), integrado na Universidade Politécnica de Madrid (UPM). E não deixa de ser curioso que seja um polo técnico de uma universidade espanhola a conceber um veículo autónomo, coisa até aqui exclusiva de grandes empresas como a Google, através da Waymo, da Otto, que pertence à Uber e de uma série de construtores de automóveis, como a Tesla e a Audi (em representação do Grupo VW), entre outros.

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O veículo de testes da UPM é um Mitsubishi i-MiEV, um pequeno modelo eléctrico, animado por um motor de 67 cv e alimentado por uma pequena bateria de 15,2 kWh de capacidade, o que lhe assegura uma autonomia de somente 160 km (em novo), e que já está há alguns anos ao serviço da UPM. Mas se o veículo utilizado não impressiona, o mesmo já não acontece com tecnologia que encerra. Impressiona e surpreende, especialmente por ser muito mais reduzida do que estamos habituados em encontrar em veículos do género.

Segundo José Eugénio Naranjo, o técnico da UPM que supervisiona os testes no nosso país, “este veículo é capaz de condução autónoma de nível 3, ou mais em algumas condições, mas ao contrário de outras soluções que existem no mercado, é extremamente mais simples”. Instado a explicar o porquê de o i-MiEV da UPM conseguir realizar com uma câmara, um GPS de alta precisão e antenas que lhe permitem estar sempre conectado ao mundo que o rodeia (outros veículos e as infra-estruturas rodoviárias), as mesmas funções dos muito mais complexos veículos da Waymo, equipados com várias câmaras e inúmeros sensores, além de radares de médio e longo alcance, e aparelhos de LiDAR (Light Detection and Ranging), Naranjo explicou que o truque “está na conectividade e no diálogo constante com tudo o que nos circunda”.

E se ficámos surpreendidos pelas afirmações do responsável espanhol, o espanto foi total quando Naranjo declarou:

Não acredito que seja possível pôr um automóvel autónomo a funcionar em condições de segurança sem todos os veículos estarem conectados à rede e uns aos outros, o que nos permite conceber soluções muito mais baratas, como esta e, ainda assim, eficazes.”

É claro que a solução técnica defendida pela universidade madrilena não está isenta de contrariedades, pelo que perguntámos ao homem da UPM como garantia que o seu sistema seria capaz de “falar” com os outros veículos. Naranjo assegura que “é fácil e até pode ser instalado como retrofit em qualquer tipo de veículo, mesmo os mais velhos, montando um tipo de e-Call, que agora já é obrigatório em todos os carros novos”. Segundo ele, o e-Call está ligado à internet, o que lhe permitirá igualmente contactar com os outros veículos, as infra-estruturas e até os sinais luminosos, com ligeiras alterações.

Curiosamente, confrontámos os técnicos da Bosch da unidade de investigação de Braga, especialistas neste tipo de comunicação e igualmente presentes nos testes, que não partilham da opinião da UPM sobre o potencial do e-Call. Segundo eles, a baixa latência do sistema de urgência (e os inúmeros pontos por onde tem de passar) torna-o pouco adaptado à troca de informações em tempo real.

Pedimos ainda a José Eugénio Naranjo que nos ajudasse a calcular os custos de adaptar a totalidade da rede rodoviária para poder contactar com os veículos, especialmente face ao investimento em veículos auto-suficientes, como os da Waymo, que obviamente melhorariam o seu desempenho com o Car-2-X. Aí, o técnico espanhol adianta que “os custos de conectar toda a rede rodoviária são muito elevados e se construir uma nova estrada ou auto-estrada já preparada para Car-2-X não representa um grande incremento, adaptar todas as estradas existentes será muito dispendioso”. Ainda assim, garante que “este nosso sistema funciona e os outros, sem ligação à rede e aos outros veículos, não acredito que consigam evitar uma série de situações delicadas, como entrar numa rotunda, quando o trânsito é mais intenso”.

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Um autónomo em evolução e galego

O terceiro veículo presente nos testes na CREL não era propriamente autónomo, pois convencionou-se – até para evitar certos abusos por parte de condutores que confiavam excessivamente em veículos deste tipo – que os veículos de nível 2, como acontece com o Autopilot da Tesla, eram considerados semiautónomos. Trata-se de um Volkswagen Golf desenvolvido pelo CTAG da Galiza, um Centro Tecnológico de Automação que já provou o seu valor numa série de áreas e que não quis deixar os carros autónomos fora do seu portefólio.

A equipa galega montou no carro alemão um sistema que, de acordo com o seu responsável, Pablo Dafonte Garcia, estava no nosso país “a testar o nível 2 e a respectiva capacidade de comunicar com a via”. Neste caso a CREL, que enviava constantemente, durante o trajecto, simulações de obras, acidentes e outros eventos, destinados a testar se os alertas chegavam ao veículo e este interpretava e geria correctamente essa informação. Mas Garcia assegurou-nos que o seu veículo é“igualmente capaz de assumir um desempenho de nível 3 ou 4, em determinadas situações”.

O Golf estava equipado com uma câmara, dois radares e dois LiDAR, ou seja, um equipamento mais próximo do que é tradicional encontrar num veículo autónomo. Um dos LiDAR trabalhava a 16 planos e a 360º, visando identificar tudo o que se passa em torno do veículo, com o segundo LiDAR a surgir no pára-choques frontal, com apenas 4 planos e 170º, concentrado no que se passa à frente do veículo. Questionado se o sistema do CTAG privilegiava a informação dos LiDAR face às câmaras ou os radares, uma vez que montava dois, um de médio e outro de largo alcance, Garcia esclareceu que “tudo depende das circunstâncias, uma vez que os LiDAR são muito bons, mas não funcionam bem com chuva ou nevoeiro, o que nos leva a confiar aí mais nos radares ou nas câmaras”.

No percurso que realizámos a bordo do veículo da empresa galega, rapidamente nos apercebemos que o Golf não seguia sempre ao centro da sua faixa, com o sistema a permitir alguma oscilação entre os limites da mesma, o que não acontece nos Tesla, nem no Audi A7 que a marca apelida Jack, um nível 3 exclusivamente em auto-estrada. Pablo Garcia explicou que essa parte do sistema ainda estava a ser apurada, garantindo por outro lado que “mesmo as curvas mais fechadas não eram um problema para o sistema desenvolvido pelo CTAG, que consegue aplicar até 7 Nm de força na direcção”.

A mala do VW está cheia de sistemas, processadores e tudo o mais destinado a controlar, bem como a registar tudo o que acontece durante os ensaios, mas o técnico espanhol garantiu-nos que “isto apenas acontece por ser um veículo de testes, uma vez que no veículo definitivo haverá menos necessidade de processamento e de armazenamento”.