O artigo que o The Washington Post divulgou esta quarta-feira como sendo o último escrito por Jamal Khashoggi escreveu — jornalista saudita que foi dado como desaparecido a 2 de outubro, depois de ter entrado no consulado saudita em Istambul e cuja morte já foi confirmada — mostrou mais uma reflexão sobre a importância da liberdade de expressão no mundo árabe. Este foi, aliás, um dos temas que o jornalista foi tratando ao longo da colaboração que tinha com o jornal norte-americano, juntamente com fortes críticas ao regime de Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da coroa da Arábia Saudita.

Foi divulgado o último artigo de Jamal Khashoggi e é sobre liberdade de expressão, o bem que o mundo árabe precisa

Em vários textos, Jamal Khashoggi quis retratar a realidade vivida na Arábia e a sua própria experiência quando vivia no país e tentava expressar a sua opinião. Foram várias as vezes em que pegou nessa realidade e a comparou com a de outros países, para exemplificar o que deveria ser melhorado.

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“Chegou a hora do MBS [Mohammed bin Salman] se libertar do seu medo da democracia”

No texto que escreveu em janeiro deste ano, Jamal Khashoggi voltou a criticar a falta de liberdade dos sauditas, desta vez fazendo a comparação com o que estava a acontecer no Irão, o grande rival da Arábia Saudita no Médio Oriente. Em “Porque é que o príncipe da coroa se deveria preocupar com os protestos no Irão?”o jornalista abordou a cobertura dos media sauditas aos protestos iranianos contra a subida dos preços e questionou a contradição com a realidade vivida na Arábia. “De facto, muitos sauditas deverão achar contraditório o facto de os media saudarem os protestos dos iranianos sobre o aumento dos preços, enquanto os sauditas são proibidos de protestar a subida para o dobro do custo do combustível e a introdução de impostos pela primeira vez no país”, escreveu Jamal.

“Chegou a hora do MBS [Mohammed bin Salman] se libertar do seu medo da democracia e da verdadeira Primavera Árabe, e também das suas preocupações justificadas do expansionismo iraniano”, afirmou o jornalista, terminando com uma reflexão: “Talvez os árabes — e os sauditas — se atrevam a dizer que também querem alguma liberdade iraniana”.

A crítica ao controlo sobre os media

O título do artigo que Jamal publicou em Fevereiro indica, desde o início, uma crítica a Mohammed bin Salman (também tratado como MBS): “O príncipe herdeiro da coroa da Arábia Saudita já controla os media da nação. Agora está a apertá-los ainda mais”. Segundo o jornalista, Salman “já controlava a praça pública muito antes de prender os seus familiares e elites empresariais em novembro”. E avisou: “Vocês podem ler [os artigos], é claro, mas pensem duas vezes antes de compartilhar ou gostar do que não estiver totalmente de acordo com o pensamento oficial do grupo governamental”.

Khashoggi diz que escritores como ele, “cuja crítica é oferecida respeitosamente, parecem ser considerados mais perigosos do que a oposição mais estridente da Arábia, baseada em Londres”, acrescentando que “os jornalistas complacentes são recompensados ​​com dinheiro e acesso a altos cargos”.

“Muitas pessoas assumiram que o homem forte do reino, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, pretende controlar os media. Isso está longe de ser verdade, simplesmente porque ele já o faz”, concluiu.

A visita a Detroit para ver “como a cidade antes falida se está a reconstruir”

Na altura em que o príncipe saudita visitou os Estados Unidos, mais concretamente Nova Iorque, com o objetivo de procurar novos parceiros “que ajudassem o seu país a libertarem-se da dependência do petróleo”, Jamal também deixou críticas ao regime, sobretudo sobre a pobreza vivida em alguns locais da Arábia.

Ele [MBS] poderia ter escolhido outros destinos — Los Angeles, talvez para obter algumas dicas sobre as novas empresas de entretenimento que espera crescer no reino. Poderia ter feito uma paragem em Filadélfia para aprender o que os fundadores têm a dizer sobre a cobrança de impostos (outra das suas inovações bem vindas) e para ver como a tributação funciona apenas quando acompanhada de consentimento popular e participação da comunidade”, disse Jamal.

E voltou a dar um conselho: “O jovem governante saudita, tão ávido para redesenhar o seu próprio país, deve visitar Detroit para ver como esta cidade, que antes era falida, se está a reconstruir”. Jamal utilizou também como exemplo algumas cidades do interior da Arábia Saudita, comparando-as às “miseráveis favelas do Terceiro Mundo”. “Antes do MBS se aventurar na construção de novas cidades, talvez deva lidar com as antigas”, acrescentou.

“Não há outro caminho para nós?”

Em maio, Jamal voltou a confrontar o regime de Riade sobre a falta de liberdade de expressão, utilizando como exemplo as várias pessoas que foram presas no país por simplesmente expressarem a sua opinião. “Estão-nos a pedir para abandonar qualquer esperança de liberdade política e para ficarmos calados sobre prisões e proibições de viagens que afetam não apenas os críticos, mas também as suas famílias. Esperam que aplaudamos vigorosamente as reformas sociais e elogiemos o príncipe herdeiro, evitando qualquer referência aos sauditas pioneiros que ousaram abordar essas questões há décadas”, começou por escrever o jornalista.

Não há outro caminho para nós? Devemos escolher entre o cinema e os nossos direitos como cidadãos para falar, seja em apoio ou crítica das ações do nosso governo? Apenas damos voz a referências brilhantes às decisões do nosso líder, a sua visão de futuro, em troca do direito de viver e viajar livremente – para nós mesmos e para as nossas esposas, maridos e filhos também?”, questionou Jamal.

O jornalista conta que tem “acordado todas as manhãs desde junho do ano passado” com a decisão de deixar a Arábia Saudita, depois “de ter sido silenciado pelo governo durante seis meses”.

A guerra no Iémen: “O príncipe herdeiro da coroa deve pôr fim à violência

Em setembro, Jamal não esqueceu a guerra no Iémen, que teve um dos episódios mais marcantes quando uma bomba lançada por um avião pela Arábia Saudita (e apoiada pelos EUA, Reino Unido, França) atingiu de forma letal um autocarro. Morreram 51 pessoas, entre as quais 40 crianças.

O jornalista é claro na sua opinião: “A Arábia Saudita tem de enfrentar os danos dos últimos três anos de guerra no Iémen. O conflito azedou as relações do reino com a comunidade internacional, afetou as dinâmicas regionais de segurança e prejudicou a sua reputação no mundo islâmico”.

Ao mesmo tempo, disse Jamal Khashoggi, o príncipe “deve pôr fim à violência e restaurar a dignidade do local de nascimento do islão”, aconselhando-o a ouvir as palavras do secretário da Defesa dos Estados Unido, Jim Mattis, quando pediu às autoridades sauditas para “fazerem tudo o que é humanamente possível para evitar qualquer perda de vida inocente”.