Não é desconhecida dos portugueses. Uma obra de Yayoi Kusama pôde ser vista há poucos meses em Lisboa, na exposição “No Place Like Home”, no Museu Coleção Berardo, e desde 1998 a estação de metro do Oriente apresenta dois painéis de azulejos de Kusama nas paredes da plataforma – uma encomenda do Metropolitano de Lisboa e de Sanchez Jorge, arquiteto que projetou a estação.

Não sendo ignorada, só nos últimos anos ganhou reconhecimento do grande público, com exposições esgotadas em todo o mundo e fotografias de obras a circular aos milhões nas redes sociais, sobretudo Instagram e Twitter. Aos 89 anos, mais de 40 passados num hospital psiquiátrico, nunca a artista japonesa foi tão pop — nem tão valiosa no mercado da arte.

Exemplo disso é a exposição inaugurada a 3 de outubro na galeria Victoria Miro, em Londres (um dos maiores espaços comerciais de arte contemporânea da capital britânica desde 1985). Intitula-se “The Moving Moment When I Went To The Universe” e pode ser vista até 21 de dezembro. A entrada é livre, mas o êxito de outras exposições da artista, com enormes filas à porta desta mesma galeria, levou a Victoria Miro a optar pela reserva antecipada de bilhetes. Todas as datas já estão esgotadas.

Entretanto, um documentário biográfico estreou-se no início deste ano no festival de cinema independente de Sundance, nos EUA: “Kusama – Infinity”, da realizadora americana Heather Lenz, com edição em DVD prevista para novembro.

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[trailer de “Kusama – Infinity”, de Heather Lenz]

A narrativa do filme apresenta Kusama como uma lutadora contra o conservadorismo da família e do Japão da primeira metade do século XX, uma mulher determinada na busca de reconhecimento através da arte. Diz-se que nos anos 60, enquanto viveu em Nova Iorque, rivalizou com Andy Warhol em termos de fama e atenção mediática – até que regressou ao Japão e caiu num relativo esquecimento até ao início da década de 90.

Segundo o crítico de cinema do Guardian, Peter Bradshaw, o documentário não aprofunda aspetos da vida pessoal da artista, mas sugere que Kusama apenas teve relações platónicas e nunca fez sexo na vida, tendo aplicado à criação artística toda a energia sexual de que dispunha.

Figura carismática e misteriosa, com cabelo cor de fogo, Yayoi Kusuma é conhecida como “princesa das bolinhas” (“polka dots”). Muitas das suas obras baseiam-se nesse padrão – o mesmo que os vestidos das bailarinas de flamenco tornaram conhecido. É pintora, faz escultura, colagem, instalação e performance, quase sempre com base na repetição de padrões. É uma criadora repentista e não costuma desenhar antes de iniciar um trabalho, prefere tirar partido de torrentes de ideias e imagens que lhe surgem a cada momento. Classificam-na como artista pop e psicadélica, surrealista e minimalista. Ela diz-se obsessiva.

“A minha arte tem origem em alucinações que só eu consigo ver. Traduzo as alucinações e imagens obsessivas em esculturas e pinturas. No entanto, crio obras mesmo quando não vejo alucinações”, disse numa entrevista. “Sou uma artista obsessiva. Considero-me uma herege do mundo da arte. Penso apenas em mim quando faço o meu trabalho.”

Yayoi Kusuma nasceu a 22 de março de 1929 em Matsumoto, uma cidade japonesa rodeada de montanhas, e começou a pintar era ainda criança, ao mesmo tempo que começou a sentir alucinações. A família era abastada e vivia do comércio de sementes, sobretudo abóboras, e de negócios imobiliários. A mãe terá sido uma figura autoritária, “terrivelmente violenta”, segundo a artista, e tentou impedi-la de desenvolver um talento artístico precoce.

“Mesmo antes de começar a pintar, era diferente das outras crianças. A minha mãe batia-me todos os dias, irritada por eu estar sempre a pintar. O meu pai, um sedutor, estava constantemente ausente. Todos os meus irmãos me disseram para ser colecionadora em vez de pintora”, contou em 1999.

Depois da II Guerra Mundial, refugiou-se da família em Quioto e durante um ano estudou artes plásticas, única formação académica que possui. Em 1957, com 28 anos, estabeleceu-se em Nova Iorque, a convite da pintora americana Georgia O’Keeffe, com quem se correspondia. A mãe disse-lhe que nunca mais pensasse voltar a casa. Reza a lenda que ao chegar aos EUA a primeira coisa que fez foi subir ao topo do Empire Sate Building, olhar para o mundo lá em baixo e encher-se de certezas sobre o reconhecimento que alcançaria na América.

Em 1961, desenvolveu a série de esculturas “Accumulations”, que consistiam em formas fálicas a partir de tecidos e velharias, interpretadas como comentários irónicos à potência sexual masculina. Há quem lhe atribua intenções feministas, mas ela recusa, como fez numa entrevista ao Japan TimesNo ano seguinte, esteve representada numa exposição coletiva na Green Gallery de Nova Iorque, ao lado de artistas como Andy Warhol e Roy Lichtenstein. No fim da década, tornaram-se notados os “happenings” a que chamou “Body Festivals” e “Anatomic Explosions”. Nos primeiros, convidava o público a cobrir-se com “polka dots”, nos segundos, bailarinos nus dançavam vestidos de bolinhas, frente ao edifício da bolsa de Nova Iorque ou junto à Estátua da Liberdade, o que geralmente terminava com intervenção da polícia.

A década de 60 correspondeu a uma fase de afirmação artística. Chegou a participar na Bienal de Veneza de 1966 com a instalação “Narcisuss Garden” – 1500 bolas metálicas que vendia às pessoas que passavam, a sublinhar a ideia de mercantilização do objeto artístico, tão cara aos artistas pop. A instalação gerou controvérsia, até porque o Japão tinha recusado incluir Kusama no pavilhão oficial, e ela acabou por se retirar de Veneza, não sem antes falar a vários jornais e aparecer como protagonista. Regressaria à Bienal de Veneza de 1993, aí como representante oficial do Japão – com a instalação “Mirror Room (Pumpkin)”, uma sala de espelhos com réplicas de abóboras amarelas com “polka dots” pretos.

Faltou-lhe apoio da crítica e do mecenato nos EUA, lê-se no catálogo de uma retrospetiva de 1998 no MoMa, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Numa entrevista, afirmou ter trabalhado numa fábrica para se sustentar enquanto vivia nos EUA e sentiu desequilíbrios mentais muito fortes, a ponto de pintar não só em telas como também em mesas e cadeiras, o que a levou a consultas de psiquiatria durante seis anos. Regressada ao Japão em 1973, continuou a trabalhar, acrescentando às artes visuais a publicação de romances e livros de poesia.

A partir de 1975 passou a viver voluntariamente num hospital psiquiátrico em Tóquio e manteve a produção artística como componente essencial de terapia. “O meu trabalho é uma expressão da minha vida, particularmente da minha doença mental”, afirmou. Mantém um estúdio perto do hospital e continua a trabalhar quase todos os dias. Desde 2011, colabora com a indústria da moda e chegou a criar padrões para roupa e acessórios Louis Vuitton, a convite do designer Marc Jacobs.

Admiradora da artista Louise Bourgeois, mas, acima de tudo, do próprio trabalho, criou a Fundação Yayoi Kusama no ano passado e abriu em Tóquio um museu que ostenta o seu nome. Muitas obras são hoje vendidas em leilão a preços que alcançam os milhões. O Guardian perguntava em artigo recente: “É ela a artista mais apreciada no mundo?”