Há quase 20 anos que “Bel Canto”, de Paul Weitz (“American Pie”, “Era Uma Vez um Rapaz”) estava à espera de ser feito. O livro de Ann Patchett em que se baseia, um “thriller” romântico, inspira-se num facto real ocorrido no Peru em 1996, quando um grupo de guerrilheiros comunistas do movimento Túpac Amaru sequestrou centenas de pessoas durante uma festa na residência do embaixador japonês em Lima. A crise demorou mais de quatro meses até ser resolvida, com um ataque dos comandos do exército em que foram mortos todos os sequestradores, dois soldados e um refém. Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos EUA cancelaram a adaptação ao cinema de “Bel Canto”, por todas as razões óbvias e ainda mais uma: os guerrilheiros da história são apresentados sob uma luz simpática e vistos com muita condescendência pela autora.

[Veja o “trailer” de “Bel Canto”]

Muitos anos e várias voltas da geopolítica depois, “Bel Canto” chega enfim às telas, com os distintíssimos Julianne Moore e Ken Watanabe nos principais papéis. Mas mais valia que os produtores tivessem simplesmente passado adiante e seguido para novos projectos. É que o filme é tão mau como uma récita de ópera em que os cantores desafinam, a orquestra dá fífias e os cenários desabam. “Bel Canto” passa-se num país não identificado da América Latina. Moore interpreta Roxanne Coss, uma célebre cantora lírica contratada para cantar numa festa por Katsumi Hosokawa (Watanabe), um industrial japonês que vai investir no país e tem uma enorme admiração por ela. Entre os convidados estão diplomatas de várias nacionalidades, homens de negócios e representantes da Igreja.

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[Veja uma entrevista com Julianne Moore]

De súbito, o recital é interrompido por um grupo de guerrilheiros que estava à espera que o Presidente da República estivesse na recepção, para o sequestrarem e pedirem a libertação imediata de todos os presos políticos. Só que o presidente ficou no palácio a ver a sua telenovela favorita, e à falta de melhor, os insurgentes sequestram todos os presentes e mantém a sua reivindicação. Entra então em cena Messner (Sebastian Koch), um negociador suíço Cruz Vermelha, que vai ser o único elo de ligação entre reféns, captores e o mundo exterior, e pião das nicas do enredo. A partir daqui, “Bel Canto” transforma-se num condensado de telenovela passada em ambiente de sequestro, em que se instalam o sentimentalismo, o “kitsch”, a comédia involuntária e a inverosimilhança aberta de par em par.

[Veja uma cena do filme]

Longe de serem marxistas fanáticos e disciplinados, com planos para ir executando reféns se as suas exigências não forem satisfeitas, os terroristas revelam ser uns pacholas, com coração mole, gosto pela música e um fraquinho por futebol. Os sequestrados, em vez de aproveitarem e tentarem fugir, encaram a situação como uma espécie de férias sob vigilância armada. Todos começam a simpatizar uns com os outros e a confraternizar. Um diplomata francês acha que um dos guerrilheiros é parecido com o filho, e trava-se de amizade com ele. Uma jovem insurgente e um tradutor japonês começam a namorar. A diva e o industrial apaixonam-se, e ela começa a dar lições de canto a um dos sequestradores. Lá fora, é como se o governo e os países com representantes e cidadãos no edifício não existissem ou se tivessem esquecido deles. Entretanto, o filme vai abdicando rapidamente de toda e qualquer credibilidade.

[Veja uma entrevista com Renée Fleming no “set” do filme]

Sobre tudo isto, Paul Weitz não consegue sequer dar-nos a noção da passagem do tempo desde o início do sequestro, e numa sequência superiormente ridícula, empoleira Roxanne numa varanda para, a pedido dos guerrilheiros, cantar uma ária de Puccini para o mundo exterior. “Quando esses criminosos do governo ouvirem uma voz tão bonita, talvez encontrem uma solução para esta situação.”, diz o líder do grupo. Nada feito, o governo ou não tem membros melómanos, ou eles preferem Ricky Martin. E “Bel Canto” arrasta-se até ao inevitável final sangrento como uma diva afónica que insiste em fazer o seu solo. E nem somos poupados ao o espectáculo embaraçoso, indigno, de Julianne Moore a tentar, debalde, fazer “playback” com a voz de Renée Fleming. Até os Milli Vanilli tinham mais jeitinho.

Unico e eficaz antídoto para esta aflitiva e indigesta pepineira:  “Uma Noite na Ópera”, com os irmãos Marx, antecedido de “What’s Opera, Doc?”, com Bugs Bunny e Elmer Fudd. O resto é silêncio.