Ferida, mas de pé. Foi assim que Theresa May entrou na Câmara dos Comuns esta quinta-feira, pronta a defender a proposta de acordo para o Brexit alcançado pela sua equipa. Depois da maratona de cinco horas para conseguir aprovar o acordo em Conselho de Ministros, na véspera, tinha acabado de sofrer o golpe, nessa mesma manhã, da demissão de vários membros do seu Governo. Os de maior peso foram Dominic Raab (ministro para o Brexit) e Esther McVey (ministra do Trabalho). E, enfrentando o problema de frente, May abriu a sua intervenção no Parlamento prestando “tributo” aos “honoráveis amigos, membros de Esher e Walton [Raab] e de Tatton [McVey]”.

Cumprir o Brexit exige escolhas difíceis de todos nós. Nós não concordamos em todas essas escolhas, mas eu respeito as opiniões deles e agradeço-lhes sinceramente por tudo o que fizeram”, declarou a primeira-ministra aos seus ministros demissionários.

Passando ao ataque, May começou por tentar vender o acordo aos deputados. A primeira-ministra tentou deixar claro que não só o Reino Unido sairá “de forma suave e ordenada no dia 29 de março de 2019”, como o enquadramento para a futura relação Reino Unido-UE que foi definido garante que os britânicos têm um acordo “melhor” de relação com os europeus do que qualquer outro país fora da UE. “Disseram-nos que tínhamos tomado uma decisão binária entre o modelo da Noruega e o modelo do Canadá. Que nós não poderíamos ter um acordo personalizado. Mas a Declaração Política Geral estabelece um acordo que é melhor para o nosso país do que ambos esses modelos – um acordo de comércio livre mais ambicioso do que a UE tem com qualquer outro país“, declarou.

[Veja no vídeo, em 2:08 minutos, a síntese do acordo inicial defendido por May]

May aproveitou ainda para elencar outras vantagens que diz ter conseguido: a manutenção dos direitos de cidadãos europeus a viver no país e vice-versa, protocolos para zonas como Gibraltar e ainda um “acerto financeiro justo” — 39 mil milhões de libras (quase 45 mil milhões de euros), um valor que a primeira-ministra não mencionou, mas que lhe foi repetido por vários deputados — e que May considera “muito inferior aos valores muitas vezes mencionados no início deste processo”.

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Backstop para a Irlanda é decisão difícil, mas “certa”

Grande parte da intervenção inicial de May foi ainda dominada pela questão do backstop — a tal rede de segurança ou, como lhe chama a primeira-ministra britânica, “apólice de seguro”. Esta estratégia encontrada pelos negociadores significa, na prática, que, caso Reino Unido e UE não tenham ainda chegado a um acordo em 2020 que garanta a segurança e livre circulação na fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, entrará em vigor o backstop — ou seja, o Reino Unido passa a entrar todo ele numa união aduaneira com a UE.

O problema para muitos deputados — como deixaram claro nas suas intervenções posteriores — é que este instrumento deixaria o Reino Unido numa posição subalterna face a Bruxelas, já que teria de se manter numa união sobre a qual não poderia intervir, sobretudo nas regras que a regem. Outro problema está no facto de o Reino Unido não poder cancelar unilateralmente esse regime, se ele for aplicado.

Theresa May justificou essa escolha explicando que a alternativa proposta pelos europeus (criação de uma fronteira aduaneira que separasse a Irlanda do Norte do resto do Reino Unido, ao mantê-la numa união comercial com a República da Irlanda) era “inaceitável”. Para contrariar os problemas levantados pelo mecanismo da rede de segurança, May reforçou que “o Acordo de Saída compromete ambas as partes a empregar os melhores esforços para assegurar que esta apólice de seguro nunca será usada” e relembrou que, se tal vier a acontecer, está claro no documento que essa solução deve ser “temporária” e que há uma forma de acabar com ela.

As conversações do Brexit são sobre defender os interesses nacionais – e isso significa fazer o que eu acredito serem as decisões certas, não as fáceis. Eu sei que há algumas pessoas que disseram que eu deveria simplesmente rasgar o compromisso do Reino Unido com um backstop.  Mas isto teria sido uma estratégia totalmente irresponsável”, sentenciou a primeira-ministra.

A escolha de rasgar o backstop, como propõem alguns, seria para May “irresponsável” porque “teria significado renegar a promessa feita ao povo da Irlanda do Norte durante e depois da campanha” de que o referendo nunca “levaria a um retorno das fronteiras do passado”. Ou seja, a primeira-ministra tenta explicar que foi a sua forma de impedir a criação de uma fronteira física e rígida, com controlos de segurança, entre as duas Irlandas — algo explicitamente proibido pelo Acordo de Sexta-Feira Santa, que liga a paz à unidade territorial das duas Irlandas. E foi também, como explica, a única forma de garantir a unidade territorial de todo o Reino Unido, já que uma fronteira a separar a Irlanda do Norte do resto do país, como propunha a UE, seria inaceitável para os unionistas do DUP.

Acordo dá garantias na imigração, comércio, agricultura e pescas, bem como na segurança

A primeira-ministra utilizou ainda a intervenção nos Comuns para tentar convencer os deputados de que conseguiu um acordo que respeita todos os princípios que defendeu, anteriormente, naquela Câmara, relativamente a um entendimento para o Brexit. “Acabar com a liberdade de circulação”, criando, em alternativa, um sistema de imigração baseado “não no país de onde as pessoas vêm, mas sim no que podem contribuir para o Reino Unido” é o primeiro ponto. Segue-se a “criação de uma área de comércio livre para bens” sem tarifas a aplicar, ao mesmo tempo que o país está livre para negociar “novos acordos comerciais com outros parceiros em todo o mundo”.

Soma-se também a saída da Política Agrícola Comum e da Política de Pescas Comum, uma das grandes reivindicações de vários Brexiteers e eurocéticos — “seremos nós a decidir a melhor forma de manter e apoiar as nossas quintas e o nosso ambiente e o Reino Unido tornar-se-á um Estado costeiro independente de novo”, prometeu May. E, por fim, a primeira-ministra assegura que foram acordados “elementos-chave” na questão da parceria de segurança, como acordos de extradição e troca de dados (ADN, nomes de passageiros, impressões digitais, registo de veículos).

Mais vaga foi a explicação sobre “uma parceria próxima e flexível na política externa, de segurança e defesa”, ficando por concretizar como podem o Reino Unido e a UE colaborar nestas matérias no futuro.

O apelo da primeira-ministra aos deputados: chumbar acordo pode ser “arriscar não ter Brexit de todo”

May chegou ao Parlamento sem ilusões. Sabia que tinha pela frente muitos, muitos deputados descontentes — grande parte membros do seu próprio Partido Conservador. Consciente disso, a primeira-ministra fez o seu mea culpa, reconhecendo que este “tem sido um processo frustrante” que levou o país a confrontar-se “com questões muito difíceis”. Mas, dito isto, May defendeu a sua dama:

Um bom Brexit, um Brexit que respeite o interesse nacional, é possível. Fomos perseverantes e conseguimos um avanço decisivo”, afirmou a líder dos conservadores.

Por isso, May deixou a promessa de apresentar o acordo final no Parlamento para que seja votado e fez depois o pedido aos deputados para que o apoiem. “Votar contra um acordo levar-nos-ia de volta à estaca zero. Significaria mais incerteza, mais divisão e um falhanço em conseguir alcançar a decisão que os britânicos tomaram de deixar a UE.”

A alternativa, declarou, é “sair sem acordo” ou “arriscar não ter Brexit de todo”. A última expressão valeu a May várias perguntas dos deputados, que a confrontaram com o significado dessa frase: Suspensão ou revogação do Artigo 50, que dá início ao processo de saída? Novo referendo? May rejeitou as duas hipóteses — mas nunca respondeu taxativamente o que quer dizer “não ter Brexit de todo”. Em vez disso, pediu a aprovação do acordo, que classificou como “o melhor acordo que podia ser negociado”.

O que a primeira-ministra não sabia nesse momento — embora talvez já adivinhasse —, é que pouco tempo depois, enquanto ainda respondia às três horas de perguntas, na sala principal dos Comuns, vários dos deputados do seu partido, liderados por Jacob Rees-Mogg, se reuniriam para discutir a possibilidade de a deitar abaixo com uma moção de censura.

“Eu escolho cumprir pelo povo britânico. Eu escolho fazer o que é do nosso interesse nacional. E eu entrego esta declaração à Câmara”, rematou Theresa May, no final da sua intervenção, numa tentativa final de se assumir como a líder responsável, que cumpriu aquilo com que se comprometeu, apesar de todos os obstáculos no caminho. Terá a esperança de que, ao longo dos próximos dias, essas palavras comecem a ecoar na cabeça dos deputados desiludidos e os façam conformar-se com “o melhor acordo possível” que a Primeira-ministra conseguiu alcançar.