Quando “House Of Cards” surgiu em 2013 trouxe um impulso de frescura ao panorama da televisão que se via então. A questão saltava para lá da qualidade: o que a série produzida por David Fincher e criada por Beau Willimon trouxe foi uma espécie de comfort food visual. Através dos gostos dos seus assinantes – e não só – a Netflix conseguiu produzir conteúdo que alimentava os hábitos de consumo do espectador normal, reunia pequenos detalhes que, todos juntos, tornavam o produto apetecível a gregos e a troianos. A novidade convencia facilmente de que aquilo era boa televisão. Ainda é e aí está a génese do binge-watching tal como o conhecemos: não foi um acaso que a segunda temporada de “House Of Cards” tenha estreado no Dia dos Namorados em 2014.

Hoje não passou assim tanto tempo e o binge-watching (ver uma temporada inteira de seguida, episódio a episódio) é uma obrigação. Consomem-se séries de seguida como se não fosse possível de outra maneira e, de alguma forma, morre um pouco a beleza de ver televisão por preguiça. E é uma pena que já não possamos ser preguiçosos e que tenhamos de ser produtivos até no sofá, com o comando na mão (ou no telemóvel, eu sei lá).

A Netflix adora essa produtividade. Adora tanto que continua a produzir tudo desmesuradamente, para alimentar os gostos que o algoritmo quer gerar. E continua a produzir tanto por causa de um fator essencial para o binge-watching: a novidade. Certamente já passou pelo processo exaustivo de procurar qualquer coisa para ver na Netflix e não encontrar nada de interessante.

Quer ver a série X ou Y, mas sabe que um episódio não vai ser suficiente e não tem tempo para mais. Procura um filme e é demasiado longo. Procura uma série que não viu quando se estreou, mas quando chega a ela convence-se que se não a viu até agora, não vale a pena ver. Diz a si próprio que a próxima que estrear vai começar a ver desde o dia 1, para estar a acompanhar o que se diz, o que se fala, o que se vive. Mas a próxima estreia amanhã, a seguinte no dia depois e assim sucessivamente. Parece que não dá para começar nada sem um compromisso, uma razão. Ver Netflix torna-se numa espécie de trabalho, há que ser produtivo a ver televisão, ver o que toda a gente está a ver. Ver no momento. Não falhar.

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[o trailer de “Narcos: Mexico”]

Isto para falar de “Narcos: México”. A Netflix anuncia a produção como nova e esta é a primeira temporada. Mas todos sabemos que isto não existiria sem a Colômbia e sem Escobar. Vai sempre ser conhecida como uma espécie de “quarta temporada”, não há volta a dar. A história arranca no México, com novas personagens, nova trama, novo, novo, novo, novo, novo. “Narcos” é um sucedâneo bem real da fórmula “House Of Cards”, o espectador gosta tanto de tráfico de droga como dos corredores da política. São universos que nos seus extremos se tocam. “House Of Cards” nunca tirou uma cartada como esta, a de contar o mesmo movendo-se para um novo sítio, mas se tivesse acontecido não seria de estranhar. É possível que a vida pessoal de Kevin Spacey tenha derrotado esses planos.

Continuemos na soma Narcos + México, salto para a década de 1980 para dentro das origens do cartel de Guadalajara e a história de Félix Gallardo (Diego Luna) e um narrador que diz logo no primeiro episódio que “não sabe como isto acaba” mas que “vai contar como tudo começou”. Ótima premissa, cliché no momento certo e pouco depois começa a história do polícia (Michael Peña) muito infeliz com a sua vida na Califórnia que decide mudar-se para o México para descobrir que as coisas por lá são um bocadinho diferente da América. Cowboyada a sério, é mais ou menos isso.

As coisas podem ser diferentes na América, mas a vibração de “Narcos” é a mesma do passado, ou de qualquer outra fórmula que explore o B-A-BA do tráfico de droga. Na elaboração de “México” faltou, talvez, perceber que o que tornou “Narcos” tão impactante não foi necessariamente o fator “tráfico de droga” ou a narrativa sobre drogas que parece tirada de um qualquer filme aleatório. O que resultou foi o facto “Escobar”. A história de Escobar permitia uma personagem suficientemente passada dos carretos para se tornar numa goma da cultura popular. Ou seja, era sexy. Muito sexy.

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A narrativa de “Narcos” começou pelo topo. E “México” deixa a sensação de um evento de segunda categoria. Isto não seria de todo um problema se as opções estilísticas, de construção de personagens e da sua musculatura causassem surpresa, ao invés de se optar por recursos narrativos que são frequentemente vistos em séries do género – e não só – e que procuram apenas, e só, o tal conforto. E aqui acontece o mesmo que se passa com a chamada comfort food: é perfeita quando há a perceção consciente de que é isso que está a acontecer, mas perde todo o seu charme quando se abusa.

E desde o princípio que há esse abuso, um acumular de clichés para fazer o espectador gostar de “Narcos: México” (vale a pena voltar ao “não sabe como isto acaba”/“vamos contar como tudo começou”), de lugares comuns a puxar pelos ritos de passagens (quando Félix Gallardo é salvo de uma execução) ou pelo acumular de erros de uma personagem e respetivo abre-olhos (as sucessivas precipitações nos primeiros episódios do Kiki​ ​Camarena de Michael Peña).

“Narcos: México” é um ping-pong constante entre as duas personagens, um jogo entre o genérico e a ausência de surpresa. Sem o factor Escobar, percebe-se que o esqueleto de “Narcos” confia em demasia no gosto pela previsibilidade do espectador. A familiaridade com qualquer outra história em volta do tráfico de droga não é casual. “Narcos: México” acusa o esgotamento de uma fórmula e a procura de deixar tudo bem redondinho para que não se estranhe a fórmula ganhadora de Escobar.

Claro que há diferenças entre o que se passou na Colômbia e no México, mas o trato narrativo é muito similar, certinho, sem riscos, a apontar para o aborrecimento do espectador, que verá “Narcos: México” porque sim e não porque gosta. E, mesmo que goste, não será deste “México”, mas do sabor que a primeira narrativa de “Narcos” deixou. Esta relação está num marasmo: a Netflix sabe tanto sobre nós e sobre o que gostamos que já começamos a ficar um bocadinho entediados com isso. Sem alarmes e sem surpresas, já cantava o outro.