Era uma das biografias mais esperadas do ano e já está nas lojas. Becoming: a minha história é a biografia de Michelle Obama, a antiga primeira dama americana, mulher de Barack Obama, presidente dos EUA entre 2009 e 2017. O livro é um relato pessoal da vida, da família e da política que rodearam Michelle. Memórias dos primeiros anos e dos tempos mais recentes, com revelações íntimas e sobre a vida na Casa Branca.

O Observador publica um excerto que regressa ao momento da vitória em 2008, quando Barack Obama foi eleito presidente pela primeira vez.

“Becoming: a minha história”, de Michelle Obama (Objectiva)

“Eram precisamente dez da noite quando as estações de televisão começaram a apresentar imagens do meu marido sorridente e a declarar que Barack Hussein Obama seria o 44.º presidente dos Estados Unidos da América. Todos nos levantámos de um salto e começámos instintivamente a gritar. Os colaboradores da campanha irromperam na suíte, e os Bidens também, todos a passar de abraço em abraço. Foi surreal. Foi como se tivesse sido retirada do meu corpo e só estivesse a ver-me reagir.

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Ele conseguira. Todos conseguíramos. Parecia quase impossível, mas a vitória foi sólida.

Naquele momento pareceu-me que a nossa família tinha sido lançada de um canhão num estranho universo submarino. Tudo parecia lento, aquoso e ligeiramente distorcido, apesar de estarmos a caminhar depressa e com uma orientação precisa, levados por agentes dos serviços secretos para um elevador de carga, conduzidos por uma porta das traseiras do hotel para um SUV que nos esperava. Senti o cheiro do ar quando saímos para o exterior? Agradeci à pessoa que nos abriu a porta quando passámos? Estava a sorrir? Não sei. Era como se ainda tentasse nadar na direcção da realidade. Presumi que um pouco desta reacção se deveria ao cansaço. Como era de esperar, fora um dia muito longo.

Vi que as miúdas estavam ensonadas. Tinha-as preparado para a próxima parte da noite, explicando-lhes que, quer o pai vencesse ou perdesse, teríamos uma grande e ruidosa celebração num parque.

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Naquele momento, seguíamos a grande velocidade pela estrada de Lake Shore num cortejo de automóveis escoltado pela polícia, em direcção ao Parque Grant. Eu tinha percorrido esta rua centenas de vezes na vida, das viagens de autocarro para casa vinda da Whitney Young às idas ao ginásio antes de amanhecer. Esta era a minha cidade, tão conhecida como um lugar podia ser, e no entanto naquela noite parecia diferente, transformada em algo estranhamente silencioso. Era como se estivéssemos suspensos no tempo e no espaço, quase como num sonho.

A Malia espreitava pela janela do carro, a assimilar tudo.

— Papá — disse ela, num tom quase apologético. — Não há ninguém na rua. Acho que ninguém vem à nossa celebração.

Eu e o Barack entreolhámo-nos e desatámos a rir. Só naquele momento percebemos que os nossos carros eram os únicos que circulavam na rua. Agora, o Barack era o presidente eleito. Os serviços secretos tinham desimpedido tudo, encerrando uma secção inteira da estrada de Lake Shore e bloqueando todos os cruzamentos ao longo do percurso — precaução normal para um presidente, como depressa ficaríamos a saber. Mas, para nós, era novo.

Tudo era novo.

Pus um braço à volta da Malia.

— As pessoas já estão lá, querida — observei. — Não te preocupes, porque estão à nossa espera.

E estavam. Mais de 200 mil pessoas tinham-se amontoado no parque para nos ver. Ouvimos um burburinho expectante quando saímos do carro e fomos levados para um conjunto de tendas brancas que haviam sido montadas na parte da frente do parque, formando um túnel que ia até ao palco. Um grupo de amigos e família estava lá para nos receber, mas agora, devido ao protocolo dos serviços secretos, estavam contidos atrás de um cordão. O Barack pôs o braço à minha volta, quase como se quisesse confirmar que eu continuava ali.

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Entrámos no palco minutos mais tarde, os quatro, eu a segurar a mão da Malia e o Barack a segurar a da Sasha. Vi muitas coisas ao mesmo tempo. Vi que uma parede de grosso vidro à prova de bala tinha sido erigida à volta do palco. Vi um oceano de pessoas, muitas das quais acenavam pequenas bandeiras americanas. O meu cérebro não conseguia processar nada daquilo. Tudo parecia grande de mais.

Recordo-me de muito pouco do discurso do Barack naquela noite. Eu, a Sasha e a Malia observámo-lo das alas enquanto ele proferia as suas palavras, rodeado por aqueles escudos de vidro, pela nossa cidade e pelo conforto de mais de 69 milhões de votos. O que retive foi aquela sensação de conforto, a estranha calma daquela noite de Novembro invulgarmente quente junto ao lago, em Chicago. Depois de tantos meses em comícios de campanha cheios de energia, com multidões deliberadamente levadas a um frenesi de gritos e cânticos, a atmosfera no Parque Grant era diferente. Estávamos diante de uma gigante e jubilosa massa de americanos que também estavam palpavelmente pensativos. O que ouvi foi um relativo silêncio. Era quase como se conseguisse distinguir cada rosto na multidão. Havia lágrimas em muitos olhos.

Talvez a calma seja uma coisa que imaginei, ou talvez, para todos nós, fosse apenas resultado do adiantado da hora. Afinal de contas, era quase meia-noite. E todos tinham estado à espera. Tínhamos esperado muito, muito tempo.”