Se Paolo Sorrentino quisesse ter feito um filme fácil sobre Silvio Berlusconi, bastar-lhe-ia ter seguido um de dois estereótipos confortáveis. Ou apresentá-lo como uma caricatura, um bufão pronto-a-ridicularizar, ou como uma figura de contornos sinistros, um neo-fascista ameaçador, tal como aparece em “O Caimão”, o filme que Nanni Moretti lhe dedicou em 2006 e em que se manifesta apenas no final. Mas Sorrentino, que já em “Il Divo-A Vida Espectacular de Giulio Andreotti” (2008), tinha tratado de forma original o homem que foi sete vezes primeiro-ministro de Itália, e a quem chamavam “O Papa Negro”, preferiu dar-nos, em “Silvio e os Outros”, não só um Berlusconi mais realista, mais humanizado e menos reducionista, como também falar de pessoas próximas dele, caso da segunda mulher, a actriz Veronica Lario, ou de alguns dos seus homens de confiança.

[Veja o “trailer” de “Silvio e os Outros”]

Como o realizador disse, “Silvio e os Outros” não é um filme nem “por” nem “contra” Silvio Berlusconi. Nem sequer um filme “político” na acepção mais engajada da palavra. É um filme sobre Berlusconi como emanação e representante de uma certa Itália, e de uma decadência tipicamente italiana (que Paolo Sorrentino, aliás, tinha já mostrado em detalhe em “A Grande Beleza”). A Itália da pior e mais estupidificante televisão da Europa, de uma elite social, financeira e política cúpida, hedonista e dissoluta, desligada do resto do país e desprezando-o, e dos parasitas que lhe disputam migalhas e favores. Um país numa crise institucional e anímica tão grande, que em vez dos políticos profissionais em que já não confia por estarem completamente desacreditados, dá uma oportunidade a uma personagem do mundo empresarial, mediático e dos negócios como Berlusconi, o homem mais rico de Itália.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja Paolo Sorrentino e Toni Servillo no Festival de Toronto]

Tal como Sorrentino o filma, e Toni Servillo, o seu actor-fétiche, o personifica, este Berlusconi apanhado entre 2006 e 2010, um ano antes de se demitir do governo, é parte uma versão contemporânea de um imperador da Roma antiga, com todo o poder, a riqueza, a capacidade de influenciar e corromper, as mulheres e as orgias, mas nenhuma da grandeza; e parte um super-vendedor, fala-barato mas charmoso e irresistível: de imobiliário, de canais e programas de televisão, de si mesmo, e de um sonho de uma vida e de um país melhores. (A certa altura da fita, Berlusconi liga para um número de telefone ao calhas, e consegue vender a uma senhora um apartamento novo num condomínio que ainda nem sequer foi construído. ) E “Silvio e os Outros” é um “Satyricon” pimba, “kitsch” e novo-rico sobre a Itália berlusconiana.

[Veja uma sequência do filme]

O realizador não escamoteia nem adoça os defeitos, as falhas de carácter ou as trafulhices políticas, empresariais e legais de Berlusconi. Só que não o reduz a isso e procura ir para além delas. Toni Servillo, que já foi um grotesco Guilio Andreotti no filme citado que Sorrentino lhe dedicou, começa por parecer um boneco de cera animado. Mas pouco a pouco, o actor vai-se dissolvendo na personagem e esta ganha vida e entranha-se, com o seu ar jovial, o cabelo ralo e pintado, o bronzeado artificial, a dentadura branqueada (e que origina um dos momentos de mais genuína e patética reflexão de Berlusconi sobre si mesmo), o comportamento entre o gentil e o sincero, e o trapaceiro e o implacável. O homem que, sorridente, “compra” seis senadores de esquerda para fazer cair o governo, é o mesmo que não se esquece da promessa feita à velhinha sobrevivente do terramoto de L’Aquila.

[Veja uma sequência do filme]

Originalmente, “Silvio e os Outros” (“Loro”, no título original) são dois filmes com pouco mais de três horas, o primeiro mais centrado nas figuras de Sergio Riccio e da mulher, Tamara, parte empresários de raparigas aspirantes a modelos e vedetas menores, parte proxenetas corruptores, que entraram no círculo privado de Berlusconi como fornecedores de mulheres para as suas festas “bunga bunga”; o segundo quase exclusivamente dedicado a Berlusconi e passado em grande parte nas suas casas de super-luxo na Sardenha ou em Milão. A versão que se estreia em Portugal é a internacional, uma montagem das duas fitas com cerca de duas horas e meia. E ressente-se, na estrutura, no ritmo, no equilíbrio e na lógica narrativa, dessa operação de corte e colagem feita por Sorrentino.

A primeira meia hora de “Silvio e os Outros” é repetitiva e cansativa, um corrupio espalhafatoso e redundante sobre as andanças legais e ilícitas de Sergio e Tamara, entre coca, festas e sexo, e a insistência em conseguirem chegar até “ele”, tal como Berlusconi é reverente e insistentemente referido por todos; e o final é algo abrupto, com uma ou duas cenas incompreensíveis.Mas o “miolo” de “Silvio e os Outros”, passado na intimidade de Silvio Berlusconi, entre família (Elena Sofia Ricci é excelente na mulher dele, e as suas sequências juntos enriquecem o filme em dramatismo e complexidade emocional e humana), amigos, capangas, políticos e sicofantas vários, somado à interpretação “invisível” de Toni Servillo, contrabalançam as assimetrias, redundâncias e arestas desta versão remontada. E com ou sem Berlusconi, a Itália lá vai indo. “E la nave va”, já dizia Fellini.