A 28 de novembro de 2015, chegara o dia. Na Esprit Arena de Düsseldorf, Tyson Fury teria pela frente Wladimir Klitschko, uma espécie de monstro sagrado entre os pesos-pesados do boxe mundial que andava há anos a fio a ganhar, defender ou acumular títulos (e dinheiro) em combates na Alemanha, nos Estados Unidos, na Suíça ou na Rússia. Depois da derrota com Lamon Brewster, levava um total de 22 vitórias consecutivas. Aquela seria a 23.ª. Seguramente. Mas o Gypsy King trocou-lhe as voltas e arrasou com os prognósticos por decisão unânime. Em 371 tentativas, acertara 86 vezes no adversário. Ao todo, ficou com seis cintos de campeão – WBA (Super), IBF, WBO, IBO, Lineal e The Ring. Em 25 combates, vencera sempre.

“Este é um sonho que se tornou realidade. Trabalhámos tanto para isto e conseguimos. É complicado chegar a países estrangeiros e ganhar por decisão, é também por isso que representa tanto para mim”, comentou no final o britânico nascido em Manchester. Pouco mais de seis meses depois, o mundo de Fury desabara e o pugilista pensou no suicídio.

“Estava a conduzir o meu Ferrari nesta faixa onde estou e, no final da mesma oito quilómetros depois, existe uma enorme ponte que atravessa a via. Acelerei o carro até às 190 milhas [300 km/hora] e ia na direção dessa ponte. Já não ligava ao que as pessoas pensavam, não me importava de magoar a minha família, os meus amigos, qualquer pessoa. Não me importava com nada, só queria morrer. Tinha desistido da vida. Depois ouvi uma voz que me disse: ‘Não faças isso Tyson. Pensa nos teus filhos. Pensa na tua família. Pensa naqueles pequenos rapazes e raparigas que crescem sem pai e com todos a dizer que o pai era um homem fraco que te deixou e seguiu o caminho mais fácil”, confidenciou no final da semana passada ao The Independent. “Antes de chegar à ponte, encostei na autoestrada e estava a tremer. Estava nervoso, não sabia o que fazer. Estava com imenso medo. Pensei comigo mesmo: ‘Nunca mais vou tentar ou sequer pensar no suicídio outra vez'”, acrescentou.

Tyson Fury surpreendeu Wladimir Klitschko, ganhou seis cintos mas abdicou menos de um ano depois (PATRIK STOLLARZ/AFP/Getty Images)

Tyson Fury encontrou outros adversários na vida depois daquele retumbante triunfo em solo germânico. Lesões, problemas mentais, excesso de peso, adição a diversas substâncias. Bateu no fundo mas começou ali a ver a luz ao fundo do túnel para voltar a ser o que era. Correção: ser ainda melhor do que tinha sido. No final de 2017, não parava de engordar mas estava mais leve na forma de olhar de vida. Enfrentou-a, valorizou o que havia de bom e deu um novo rumo. Um ano depois, voltou a discutir o título de campeão mundial de pesos-pesados. Deu empate, o primeiro e único numa carreira sem derrotas. No entanto, polémica na decisão à parte, escreveu mais um capítulo de uma incrível história aos 30 anos.

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Kristian Blacklock concebeu um rigoroso programa de treinos e dieta para acabar com mais de dois anos de excessos. Deveria ser para 18 meses, teve de ser equacionado para 12. Com muita força de vontade à mistura foi cumprido e o britânico conseguiu perder quase 60 quilos. “Se me perguntassem um ano antes se ele conseguiria disputar o título mundial agora, da forma como estava e com o peso que tinha, diria que não era algo realístico. Mas a verdade é que, depois de ter feito o primeiro campo e de ter perdido muitos quilos, as possibilidades tornaram-se reais”, contou o preparador ao Daily Telegraph, antes de especificar todos os passos que começaram com poucos hidratos e evoluíram depois para comida de qualidade mas com proteína e carbonatos como ovos, peixe, frango e outras carnes magras ou uma especialidade desenhada pelo chef Tim Alcock: uma receita de frango com… manteiga de amendoim. “Quando se gosta da dieta, fica tudo mais fácil”.

Pelo meio, Fury ia partilhando vídeos no seu Instagram dos treinos, fosse com pesos e explosão no ginásio ou com troncos às costas a correr na estrada. Em vésperas de combate com Deontay Wilder, americano que tinha também apenas vitórias em todos os combates como profissional, o trabalho estava feito e o britânico decidiu cortar a barba. “Este sou o novo eu, num novo dia e a começar um novo tempo”, contou em entrevista à BBC. “O que mais quero no final? Voltar para a minha família, comer tartes de Natal… Foram dez semanas de trabalho longe deles. Com o cinto? Bem, não vou fazer amor com ele pois não? O cinto é algo material, como um relógio, um casaco ou um carro, coisas que não irá comigo”, comentou.

Filho de John, também ele um antigo pugilista, ganhou o nome em homenagem a Mike Tyson e teve de lutar desde pequeno pela visa, por ter nascido prematuro no Verão de 1988. As hipóteses de sobrevivência não estavam propriamente do seu lado mas, aqui como no futuro, conseguiu contorná-las para o passo seguinte. Que trouxe mais dificuldades, que trouxe de novo a superação. “Ele desafia as probabilidades desde o dia 1, se calhar ele é mesmo assim”, contou o pai numa reportagem da BBC.

“Imaginava que as cortinas estavam a arder e que leões comiam os seus pés. Tinha febres muito altas e colocávamos gelo ou muitas vezes íamos para o hospital”, acrescentou a propósito das alucinações que sofreu quando era mais novo. Aos 11 anos, a família mudou-se para Cheshire e Tyson deixou a escola para ajudar o pai a construir a nova casa. Como amador no boxe, chegou a representar a Rep. Irlanda e depois Inglaterra, sagrando-se campeão nacional aos 20 anos. “Pensei: ‘Será que é isto que quero para os meus filhos? A resposta é não. Queriam que seguissem a sua educação, que tivessem um negócio ou um trabalho próprio. Um dia, quando disse ao Tyson que não podia ir comigo para o treino, esperou até ao fim no carro. Quando lhe coloquei as luvas fiquei chocado porque tinha um talento natural. Em 30 anos, ainda me impressiona”, revelou.

Entre Inglaterra, Rep. Irlanda, Estados Unidos e Canadá, contra adversários húngaros, alemães, russos, britânicos, austríacos, checos, americanos, brasileiros, canadianos e romenos, Tyson Fury chegou ao combate com Klitschko com um recorde de 24-0. Aumentou-o mas, menos de um mês depois, já tinha perdido um dos títulos (IBF): como estava obrigado no contrato feito com o ucraniano a conceder a possibilidade de “desforra”, e isso ia contra as regras de rotatividade obrigatória, ficou sem o cinto. Os outros caíram no ano seguinte, em 2016: depois de ter acusado cocaína num controlo, entre algumas declarações polémicas que motivaram muitas críticas pelo carácter homofóbico (além de se queixar de ser tratado de forma diferente pelas suas origens), anunciou numa emotiva declaração que sofria de uma depressão e que ia abandonar a modalidade. “Ganhei todos estes títulos dentro do ringue e penso que devem também ser perdidos aí mas sou incapaz de defendê-los”, assumiu.

No passado fim de semana, Fury regressou aos ringues no Staples Center, em Los Angeles. Antes do combate com o campeão americano, houve muitas picardias e provocações mas, qualquer que fosse o resultado, o britânico já conseguira a sua vitória só nas pesagens e nas conferências de apresentação: aquele indivíduo gordo, de cara redonda e que procurava um objetivo de vida surgiu com outra face, totalmente fit e disposto a fechar da melhor forma uma verdadeira história de filme.

Tyson Fury foi ao tapete no último assalto mas conseguiu levantar-se e terminar o combate para um “anormal” empate (Harry How/Getty Images)

O Bronze Bomber, como Wilder também é conhecido, tem igualmente uma história de vida difícil que transformou um futuro jogador de basquetebol num campeão mundial de boxe: aos 19 anos, com mais de dois metros e potência física acima do normal, foi pai de uma menina com espinha bífida e deixou os pavilhões da Universidade de Alabama, para onde conseguira bolsa, para tomar conta da filha. Abandonou os estudos, trabalhou como empregado de mesa e camionista. Tudo para nunca falhar com Naieya. “Prometi à minha filha que um dia seria campeão do mundo e seria capaz e tomar conta dela. Garanti que cumpria essa promessa. Foi ela que me inspirou a mudar”, explicou o medalha de bronze nos Jogos de 2008. Chegava ao combate com Fury com 40 vitórias em 40 combates profissionais. Nenhuma acabaria por sofrer a primeira derrota.

No final, as pontuações dos três juízes deram um anormal empate técnico (115-11, 110-114 e 113-113). Os fãs de Fury ficaram em choque com a decisão num combate onde o britânico foi melhor na maioria dos assaltos; quem torcia por Wilder criticou também a contagem feita nos instantes finais, quando Tyson foi de novo ao tapete mas lá conseguiu levantar-se e partir para cima do adversário como se nada se tivesse passado (apesar das visíveis marcas na cara com que terminaria o combate). Entre os nomes pesados da modalidade, a decisão foi unânime: Mayweather comentou na TV que Fury tinha ganho por completo os cinco primeiros assaltos mas um dos juízes atribuiu quatro triunfos aí ao americano; Lennox Lewis referiu que só os árbitros não viram que Fury foi melhor; Manny Pacquiao admitiu que estava ansioso pela desforra. Os números contam o resto.

“Espero que tenha feito todos sentirem-se orgulhosos neste meu regresso três anos depois de estar fora dos ringues. Não podia levar um knockout hoje, por isso mostrei um coração tão grande para me levantar. De certeza que vamos ter um novo combate, a 100%. Somos dois grandes campeões, os dois melhores pesos-pesados do planeta”, comentou o britânico no final de um duelo que terminou com um abraço entre ambos os pugilistas depois de algum trash talk na antecâmara. “Aproveitei todos os segundos. Não vou agora sentar-me e lamentar toda a noite aos gritos a dizer que foi um roubo. Para mim, ganhei o combate e deixo à assistência a decisão, sem esquecer que foram dois homens no ringue que deram tudo. Olhando para mim há um ano estava com 200 quilos, numa forma terrível e depois de ter passado coisas que não são segredo. Mas isto prova que qualquer pessoa pode voltar do que quer que passe. Não sou um ser humano especial, sou um homem normal, mas com a ajuda certa e a melhor direção, qualquer um pode mudar a sua vida”, completou na madrugada de domingo.

Britânico regressou a casa e foi ovacionado em Old Trafford, onde viu o seu Manchester United frente ao Arsenal  (OLI SCARFF/AFP/Getty Images)

Agora, sem cinto mas com missão cumprida, Tyson Fury vai regressar à sua terra e já tem objetivos bem definidos: utilizar os quase nove milhões de euros de prémio pelo combate para auxiliar sem abrigo, pessoas carenciadas e quem tenha problemas com álcool e drogas. “Vai ser tudo para os pobres e para construir casas para os sem abrigo. Não sabia o que fazer com esse dinheiro, não estou interessado em ser milionário. Sou um atleta de boxe, não sou um homem de negócios e vou seguir assim. Não vou levar dinheiro comigo no dia em que morrer e por isso tenho de fazer algo para ajudar pessoas que não se conseguem ajudar a si mesmas. Quando chegar a casa, além das construções, quero recolher fundos para ajudar viciados em drogas e álcool. Já tinha essa intenção mas depois de ter visitado alguns bairros na Califórnia ainda mais. Nunca tinha visto tantos sem abrigo na minha vida como em Los Angeles e isso abriu-me os olhos”, explicou o pugilista de 30 anos.