Como Portugal sempre teve os três “grandes”, Espanha sempre teve os dois “grandes”. Se no Real Madrid estão os merengues, os galácticos, uma ideia de que ninguém atinge o topo do futebol internacional sem vestir a camisola blanca e jogar no Santiago Bernabéu, o Barcelona representa uma identidade regional e a rebeldia de ser o eterno rival daquele que é considerado o maior clube do mundo (ou més que un club). Nesta conjuntura, o Atl. Madrid sempre foi “o outro”. Aquele que não era o maior clube da própria cidade e nem sequer o maior rival dessa mesma equipa. Ao longo dos anos, enquanto uns eram o ideal de sucesso e os outros o orgulho de uma região, o Atlético foi ganhando e perdendo a sua identidade. Em 2011, quando Diego Simeone chegou ao velhinho Vicente Calderón, a falta de identidade do clube e de noção do lugar que ocupava no futebol espanhol e europeu tinha atingido valores históricos só comparáveis a quando desceu de divisão.

“Quero uma equipa com compromisso. Uma equipa que joga, corre, treina, respeita o rival e compreende a inteligência do jogo”, disse Simeone na apresentação como novo treinador dos colchoneros. Quando o argentino chegou a Madrid, a hegemonia do Real Madrid e do Barcelona estava dominante como quase nunca e o Atlético permanecia numa aparente constante fase má: nos dois anteriores, tinham passado pelo banco técnico três treinadores diferentes. O último, Gregorio Manzano, tinha sido despedido depois da eliminação da Taça do Rei às mãos do Albacete, da 3.ª Divisão, e o Atleti estava apenas quatro pontos acima da zona de despromoção. Gabi, o capitão, explicava que os jogadores estavam “mentalmente afundados”. Era preciso um corte organizado com tudo o que existia e a implementação de uma nova ordem.

Diego Simeone assentou arraiais em Madrid numa altura em que o tiki taka e a predominância da posse de bola dominavam o futebol europeu e tinham o seu principal embaixador em Pep Guardiola e no Barcelona campeão europeu. E se os jogadores são o que leva os adeptos aos estádios, a própria bola é aquilo que leva os jogadores a treinar e entrar nas quatro linhas ao domingo. O primeiro passe, a “tabelinha”, o passe longo, a assistência e o remate para golo servem como testamento vivo do que um jogador foi mesmo depois do pendurar das botas. A bola, por si só, é um objeto pelo qual é fácil apaixonarmo-nos. Pedir a um jogador para se separar, largar e partilhar a bola não é natural – é como pedir-lhe que renuncie à relação mais íntima que tem. Ainda assim, foi exatamente isso que Simeone pediu ao plantel do Atl. Madrid.

A forma efusiva como Simeone celebra ou lamenta o que se passa dentro das quatro linhas não passa ao lado de ninguém

Entre o poderio financeiro do Real Madrid e a execução magistral da posse de bola por parte do Barcelona, o argentino percebeu que a forma de chegar a algum lado passava por ignorar os aspetos estéticos e de popularidade e dar primazia ao brutal e eficiente. Determinou que, ainda que nunca fosse ganhar prémios e ser aclamado pelo seu estilo, o seu Atlético iria abraçar a luta e ser bem sucedido. A vitória, enquanto fim cujos meios não interessam, seria o destino final. Nessa primeira temporada, o Atl. Madrid terminou o Campeonato em quinto lugar e conquistou a Liga Europa. No ano seguinte, o primeiro que Simeone orientou integralmente, ficou em terceiro e ganhou a Taça do Rei, batendo o Real Madrid na final. Até que, em 2013/14, o Atlético venceu o Campeonato pela primeira vez desde 1996 e chegou à final da Liga dos Campeões, onde perdeu com os merengues. Os dois grandes tinham oficialmente passado a três e o mundo conhecia uma nova filosofia: o Cholismo.

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O termo cholo, originalmente, era uma espécie de calão que servia para identificar os homens latino-americanos de classes sociais inferiores. Com o tempo, a palavra adquiriu um novo significado e é agora encarada como sinónimo de perseverança, resistência e insistência. Nas camadas jovens do Vélez Sarsfield, Simeone recebeu a alcunha de Cholito, que mais tarde evoluiu para El Cholo, pela forma combativa como interpretava o jogo e via cada partida como uma final. Foi no próprio Vélez que surgiu a primeira grande inspiração para aquilo que é hoje em dia conhecido como Cholismo Victorio Spinetto, então treinador do clube, foi o primeiro a revoltar-se contra a La Nuestra, a forma de jogar que tinha proliferado na Argentina entre as décadas de 30 e de 50 e que se baseava no futebol artístico, apoiado e de espetáculo. Para Spinetto, o futebol era algo que tinha de ser ganho. Assim, quando assumiu o comando técnico da equipa em 1942, a vitória era o objetivo simples, assumido e único. Levou o clube até à primeira divisão argentina e chegou a ficar em segundo, algo inédito na história do Vélez.

De Spinetto, a filosofia passou para Osvaldo Zubeldía, avançado do Vélez que depois treinou o Estudiantes nos anos 60 – naquela que ainda é hoje reconhecida como “uma das equipas mais feias que mais sucesso teve” –, e daí para Carlos Bilardo. O antigo centro-campista do Estudiantes, epíteto do anti-futebol implementado por Zubeldía e uma das vozes do treinador dentro de campo, transportou muitos dos ensinamentos para a própria carreira de treinador e levou a seleção argentina à vitória no Campeonato do Mundo de 1986 com um futebol prático e eficiente: e em tudo diferente daquele idealizado pelo antecessor, César Luis Menotti, que tinha guiado a Argentina até à conquista do Mundial 1978. Simeone cresceu a observar esta dicotomia e não precisou de muito tempo para perceber que se identificava com Bilardo e não com Menotti.

Com Beckham: no Mundial 1998, atirou-se para o chão de forma teatral e provocou a expulsão do jogador inglês

Cínico, funcional e provocador antes ainda de ser treinador – nos oitavos do Mundial de 1998, contra a Inglaterra, atirou-se para o chão de forma teatral depois de Beckham levantar o pé para chegar a uma bola e o inglês foi expulso -, chegou ao banco técnico do Estudiantes, tal como Bilardo e Menotti, em 2006. Na época de estreia, venceu o torneio Apertura, o primeiro triunfo do clube em 23 anos, sobre uma base eficiente, pragmática e sem grandes rodeios: em 19 jogos, o Estudiantes sofreu apenas 12 golos. Depois de passagens pelo River Plate e pelo San Lorenzo, a ida para Itália, um país que em nada lhe era estranho (jogou no Pisa, no Inter e na Lazio), apareceu em 2011 pelas mãos do Catania e durou apenas seis meses. Mas, segundo Simeone, a experiência “foi uma verdadeira curva de aprendizagem”. “Cresço na dificuldade. Em termos de coragem e de ideias, muito do meu Atleti vem de Itália”, admitiu mais tarde o treinador, que cita Gigi Simoni como uma das principais inspirações e tem em Giovanni Trapattoni um confesso admirador.

Seis meses depois de deixar o Catania, chegou ao Atlético de Madrid, que tinha representado de 1994 a 1997 e onde foi treinado pelo croata Radomir Antić, que cita como outra das grandes influências. Há pouco tempo, em entrevista ao As, explicou de forma sucinta que sempre soube que regressaria aos colchoneros porque se sente “em casa”. “O Atlético é o meu sítio no mundo. Durante a minha carreira de jogador fui um pouco nómada, desde os 20 anos que ando a viajar pelo mundo a jogar e a treinar em sítios diferentes. Sempre disse que o nosso sítio no mundo é aquele onde nos sentimos mais confortáveis”, acrescentou Simeone.

O Cholismo, para lá dos feitos surpreendentes, trazia um método disruptivo que cortava com tudo o que era a ordem do futebol europeu na altura. O tiki taka era a filosofia mais bem sucedida, tanto a nível clubístico, no Barcelona, como nas seleções, onde Espanha tinha sido duas vezes campeã da Europa e uma outra do Mundo. Na época em foi campeão espanhol, o Atl. Madrid terminou o Campeonato com a nona maior percentagem de posse de bola da Liga, apenas 0,3% mais do que o Bétis, o último classificado. Simeone representava a quebra com os troféus ganhos com posse de bola – e não pedia desculpa por isso. Os contra-ataques concisos e assertivos, aliados à pressão alta e aos passes certeiros, deixavam compreender que o argentino tinha capturado na íntegra a essência de ser “os outros”, misturando-a com as próprias ideias e influências táticas para criar uma espécie de harmonia coletiva com uma mentalidade vencedora. De repente, não ter a bola tornava-se tão cativante como tê-la.

No Atl. Madrid, foi treinado por Radomir Antic, outra das suas grandes influências

Ainda assim, o Cholismo não pode ser considerado uma mistura de todas as influências de Simeone: é sim a representação de todas elas interpretadas pelo treinador argentino. É Bilardo no cinismo, Simoni no aspeto tático e Antic no propósito. E até Bielsa – com quem se cruzou na seleção argentina –, por vezes, na velocidade, na vertigem e na energia. O Cholismo é a imagem das várias fases pelas quais Diego Simeone chegou até aterrar em Madrid, há sete anos, e representa o tempo que o treinador passou a trabalhar, a aprender e a preparar-se. “O esforço não é negociável. É-me difícil interagir com aqueles que não se entregam completamente. Os fracos não me interessam”, disse uma vez. E talvez seja esta noção de sacrifício a formar uma filosofia com bases racionais tão escassas.

O Atl. Madrid de Simeone, que tem em Koke o jogador mais utilizado e em Griezmann o melhor marcador, encontrou na eficácia defensiva uma forma de competir com as superiores receitas de golos de Barcelona, Real Madrid, Bayern Munique ou Manchester City. Em 2015/16, sofreram uma média de 0.44 golos por jogo e terminaram partidas da Liga dos Campeões com percentagens de posse de bola a rondar os 25%: nos quartos de final da Champions dessa temporada, onde bateram o Barcelona, acabaram o jogo da segunda mão com 116 passes completos – o que, comparando com os 588 dos catalães, representa de forma clara a ideia de jogo do treinador argentino. A estratégia defensiva, ainda assim, é simples e eficaz e centra-se em defender com as linhas muito recuadas, normalmente até na própria grande área (os adversários do Atl. Madrid são apanhados em fora de jogo 0.7 vezes por partida, em média, a marca mais baixa das cinco principais ligas europeias). Do lado oposto do campo, a lógica por excelência é o contra-ataque assente na velocidade e na eficácia.

Esta quarta-feira, Diego Simeone completou 400 jogos enquanto treinador do Atlético de Madrid. Com a vitória por 4-0 frente ao modesto Sant Andreu, nos 16 avos de final da Taça do Rei, o treinador argentino alcançou as quatro centenas de jogos no banco técnico colchonero e é já o segundo técnico de sempre com mais jogos pelo Atlético – apenas atrás de Luis Aragonés, que tem 612. Venceu um campeonato espanhol, uma Taça do Rei, uma Supertaça espanhola, duas Ligas Europa, duas Supertaças Europeias e chegou por duas vezes à final da Liga dos Campeões. “A melhor coisa é ter um clube onde toda a gente – desde a pessoa que te atende no bar até ao jogador que acabou de chegar ou ao adepto mais antigo – sabe como jogamos. Isso é ter uma identidade”, afirmou Simeone na conferência de imprensa. El Cholo chegou a um clube que estava perdido nas identidades dos outros para lhe dar uma identidade própria. A sua.