Durante 11 anos, a Capela das Albertas esteve encerrada ao público. A partir desta sexta-feira, contudo, os visitantes do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, vão poder voltar a olhar para a única estrutura sobrevivente do antigo convento de Santo Alberto de monjas carmelitas, onde hoje fica o MNAA. Mas não vão poder entrar — o acesso vai estar vedado até à conclusão dos trabalhos de conservação e restauros, que arrancaram no início do ano com o restauro dos painéis de azulejos da nave principal, um projeto financiado da European Fine Art Foundation (TEFAF), e que prosseguirão agora com a ajuda de todos. Se tudo correr bem, em 2020 já será possível voltar a percorrer o interior da capela.

Enquanto isso não acontece, na sala anterior, há muito para ver. O novo espaço do MNAA, que vai ser inaugurado ao final da tarde, foi reabilitado para dar destaque à obra-prima do escultor português Barros Laborão, o chamado Presépio dos Marqueses de Belas. Com quatro metros de altura, é o maior do género em Portugal e foi o primeiro de grandes dimensões a ser encomendado por um privado, numa altura em que os presépios eram objetos do espaço religioso. Restaurado graças a uma campanha de angariação de fundos lançada pelo museu das Janelas Verdes em abril e que mais uma vez terminou antes do prazo estipulado, o Presépio dos Marqueses de Belas vai voltar a estar exposto em todo o seu esplendor a partir desta sexta-feira. Mas apenas com uma parte das mais de 300 figurinhas. Tal como acontece em casa, o presépio vai ser construído passo a passo até ao Dia de Reis, quando chegarão os Reis Magos, o último grupo de esculturas.

A abertura da nova sala é também o último passo na reabilitação da ala norte do primeiro piso do museu, onde esta se insere. Fechada há vários anos, tinha-se tornado numa espécie de arrecadação, onde estava inclusivamente guardado o Presépio dos Marqueses de Belas que, devido à sua dimensão, era impossível retirar. Agora vai ser possível encontrar nesta zona do MNAA “a terceira parte da história do presépio português”. Essa história começa a ser contada no terceiro piso, dedicado à escultura e pinturas portuguesas, estendendo-se depois ao piso inferior, onde vai ser possível ver “todos os barristas”, do século XVI até ao final do século XVIII. A escultura a barro é muito importante na história da arte portuguesa, sobretudo no século XVII, e para se falar nela tem-se de, naturalmente, falar também do presépio.

No centro da sala, em frente ao Presépio dos Marqueses de Belas, foi colocada a estátua do Arcanjo São Miguel, de Nicolau Pinto, que estava no terceiro piso do museu

A ideia de prolongar a história do presépio para o primeiro piso do edifício surgir “quando se começou a tentar contar a história da escultura e da pintura portuguesa, interligadas no terceiro piso”. “Verificou-se que a área estava longe de ser abundante e que era importante criar uma outra extensão. Desse modo, o que se fez foi reduzir em cima a representação do presépio a um único, que é o Presépio de Santa Teresa de Carnide”, explicou ao Observador o diretor do museu, António Filipe Pimentel. Um dos mais enigmáticos presépios seiscentistas portugueses, este deu entrada no MNAA em 1916, “completamente disperso, com as figuras avulsas”, e foi reconstituído em 2011, altura em que foi exposto na Sala do Teto Pintado.

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O primeiro passo da reabilitação da ala norte do primeiro piso aconteceu em dezembro de 2015, quando as duas primeiras salas foram inauguradas. Nestas foram colocados desde os vestígios mais antigos do século XVI, provenientes do Presépio de Carnide, até aos mais recentes, já da transição do século XVIII para o século XIX, de de que é exemplo o Presépio de São Vicente de Fora, de Barros Laborão, cuja grande obra-prima se encontra no espaço seguinte, reabilitado de forma a dar o maior destaque possível ao trabalho do artista português. Apesar de o museu ter agora uma zona dedicada exclusivamente à história do presépio português, o de Carnide vai permanecer no terceiro piso.

O grande Presépio dos Marqueses de Belas (que nunca foi dos Marqueses de Belas) já foi restaurado

Apesar de ter ficado conhecido por Presépio dos Marqueses de Belas, a obra nunca pertenceu aos Marqueses de Belas ou aos seus familiares. Acredita-se que tenha ficado assim conhecida porque esta família nobre foi a principal patrona de Joaquim José de Barros, dito Barros Laborão, escultor responsável pela direção do projeto. Dizia-se também que os marqueses estavam representados no projeto, o que um estudo preliminar da obra veio a excluir por completo. O que é certo é que a obra dirigida por Barros Laborão começou pouco depois de ser terminada, em 1822, a ser chamada de Presépio dos Marqueses de Belas.

A obra foi encomendada em finais do século XVIII pelo colecionador José Joaquim de Castro a Barros Laborão e chegou pelo MNAA em 1937, depois de várias décadas na posse dos descendentes do Marques de Pombal, que a compraram depois da morte do encomendante. Com cerca de quatro metros de altura e largura e 351 figuras, é o maior presépio do género (de maquineta, isto é, de caixa) em Portugal. Mas quando Barros Laborão a concluiu, não era tão grande assim. O primeiro presépio apresentado pelo escultor era mais pequeno, e José Joaquim de Castro não ficou satisfeito. Laborão viu-se então obrigado a “alterar tudo” e essas alterações são ainda hoje visíveis no presépio, como explicou ao Observador a conservadora Maria João Vilhena.

Barros Laborão “teve de lhe dar uma dimensão maior e essas alterações e esse engrandecimento que o próprio encomendante pede, acabam por continuar presentes, inclusivamente na maquineta, que foi aumentada”. Apesar de tudo isto se ter  passado “ainda no primeiro trabalho do presépio”, à medida que este “foi sendo restaurando e o trabalho foi avançando, foi-se percebendo que essas alterações continuam a ser percetíveis na própria estrutura”. E não só: durante a operação de conservação e restauro, que acaba por ser em grande medida um trabalho de estudo da própria obra, foi também possível concluir com mais segurança que o Presépio dos Marqueses de Belas contou com a participação de vários artistas, e não apenas de Barros Laborão, e aferir outros dados com mais segurança. Foi “um trabalho de equipa”, mas muito em função de o encomendante ter decidido que queria uma coisa diferente da apresentada.

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“Encontrámos também com muita clareza obras de escultores diferentes. A empreitada foi entregue ao José Joaquim de Barros Laborão, mas há peças de outros escultores, que estão assinadas e datadas. Apesar de se conhecerem no passado, hoje em dia sabemos exatamente quais e quem foram. E apareceram muito mais peças assinadas do que aquelas que se tinha referência”, afirmou Maria João Vilhena, acrescentando que “este presépio acaba por nos dar a perspetiva do que vai ser o presépio contemporâneo português, em que se vão juntando figurinhas ao longo dos anos”. “Aqui temos o acrescento inicial, que fez parte da história da encomenda, mas também se encontram figuras um pouco mais tardias, algumas delas relacionadas com a produção mais em série e que resultam dessa realidade do presépio contemporâneo. É interessante como uma obra com as características do tardo-barroco se mantém atualizada até chegar ao museu.”

Quando a nova sala abrir esta sexta-feira, os visitantes vão poder encontrar apenas uma pequena parte das 351 figuras que constituem o Presépio dos Marqueses de Belas porque a obra vai ser reconstruída, passo a passo, até ao Dia de Reis, a 6 de janeiro. “O trabalho de restauro é por definição moroso. Há determinados tipos de intervenções que não são compatíveis com obras de construção civil. Alguns dos trabalhos de restauro só podem ser executados num ambiente limpo, asséptico mesmo. Isso implica ritmos de trabalho que são diferenciados”, explicou a conservadora Maria João Vilhena, acrescentando que “a parte de trabalho [de restauro] sobre as esculturas está completado”. “O que vamos poder acompanhar nas próximas semanas, até ele estar completamente montado, é uma montagem sucessiva. Vai-se fazer o presépio até ao Dia de Reis, que é quando chegam os Reis Magos. São os últimos a chegar.”

O “espaço claustral” que serve de entrada à Capela das Albertas

Os trabalhos de conservação e restauro no presépio já estão praticamente terminados (a campanha de angariação de fundos terminou em outubro), mas quando o Observador visitou o museu nesta quinta-feira ainda havia muito para fazer na nova sala. A divisão foi reabilitada de forma a assemelhar-se a um “espaço claustral”, que é sugerido através das grades brancas que aqui e ali pontuam o espaço. É “como se fossemos psicologicamente os habitantes do convento”, brincou o diretor. Isso permite fazer a ligação entre o espaço público — o da capela, que passará agora a estar visível ao público — com a devoção íntima e privada do presépio, representado na nova sala através do Presépio dos Marqueses de Belas, a joia da coroa da coleção do MNAA, e nos espaços anteriores através de outras obras também portuguesas.

“Era dramático para o museu termos encerrado ao público e longe da perceção uma peça desta qualidade excecional e com esta relevância história”, afirmou o diretor. “O acesso tinha de ser feito exatamente por aqui”, e esse foi mais um dos motivos que levou o MNAA a decidir reabilitar o espaço que, graças aos meios reunidos com a ajuda do público, conseguiu fazer rapidamente o restauro da obra de Barros Laborão “e com isso romper finalmente esta parede e termos o último capítulo da história do presépio português que entretanto abre para a Capela das Albertas”. “Conseguimos criar um programa que foi por um lado arquitetónico de modelação do espaço, e por outro resolução de problemas de acessibilidade. Isso permitiu criar museologicamente dois discursos que se intercetam — o dos presépios, que termina naquela sala com o Presépio dos Marqueses de Belas e um conjunto de esculturas e pinturas que permite compreender a época e a própria produção do presépio, e o núcleo conventual monástico, que é uma das componentes do museu.”

Segundo a conservadora Maria José Vilhena, a nova sala vai reunir “peças de grande importância plástica e artística dentro da história da arte portuguesa, quer do mobiliário, quer da pintura. Temos algumas obras de Pedro Alexandrino de Carvalho, O Terramoto de 1755, de João Glama… No fundo artistas contemporâneos dos que trabalharam no Presépio dos Marqueses de Belas, a obra eixo de tudo isto. Muito gira em volta dele.” No centro do espaço, em frente ao presépio, inserido numa caixa criada especialmente para si, vai estar a estátua do Arcanjo São Miguel, que ficou famosa em 2016 depois de ter sido derrubada por um turista quando estava no terceiro piso.

Além do Presépio dos Marqueses de Belas, a nova sala vai ter obras de contemporâneos de Barros Laborão, como O Terramoto de 1755, de João Glama

Por outro lado, o espaço vai também juntar “todas as disciplinas estéticas que convergiam na capela”, obra de arte “total onde interagem a talha, o azulejo, a escultura e a pintura”, explicou António Filipe Pimentel, salientando que a capela do antigo convento de carmelitas não era “uma peça estática como hoje a vemos”, mas “uma peça dinâmica que era usada na liturgia ao longo do ano”, com o recurso a paramentos, peças de ourivesaria e mobiliário cerimonial. “Tudo isso está agora evocado neste tal ponto de convergência, e isso permitiu autonomizar a sala ao lado, dedicando-a aos têxteis.”

A Sala dos Têxteis foi aberta em setembro e as restantes peças vão passar a estar agora expostas na sala que antecede a Capela das Albertas, fazendo a ligação entre a devoção pública e privada, e permitindo aos visitantes perceber como é toda a “teatralidade” do espaço cerimonial. “Temos assim dois vetores: de um lado, a sala que completa a narrativa da história do presépio português, em complemento com o piso 3 da pintura e escultura portuguesas, e por outro a evocação das disciplinas estéticas que estavam relacionadas com o uso do espaço litúrgico. Isso permite centrar os nossos esforços na quarta campanha que está a começar, a do restauro da Capela das Albertas, que agora as pessoas já conseguem ver.”

MNAA vai lançar campanha para restaurar capela

A campanha de angariação de fundos para restaurar o Presépio dos Marqueses de Belas, no valor de 40 mil euros, foi lançada em abril. O prazo terminava a 31 de dezembro mas, pela terceira vez consecutiva desde o lançamento da iniciativa que permitiu adquirir colocar a obra A Adoração dos Magos de Domingos Sequeira no lugar certo, o MNAA voltou a reunir o valor necessário antes do tempo. Tudo isso se deve em grande parte ao sucesso da campanha original de 2016, que consagrou o museu das Janelas Verdes “como o lugar certo”. “Aliás, o teaser do ‘lugar certo’ até já entrou na linguagem comum”, garantiu ao Observador o diretor do MNAA, António Filipe Pimentel, frisando que este tipo de angariação permite ao museu “a agilidade de conseguir os fundos e os meios” fugindo “ao espartilho da administração central, mas sobretudo “uma inserção mais eficaz na comunidade”. “Porque a questão é essa.”

A próxima angariação terá como objetivo restaurar a Capela das Albertas, fechada durante 11 anos por razões de segurança. Depois de o telhado ter sido arranjado e de ter sido feita a monitorização das unidades, foi dado um primeiro passo no início deste ano com o restauro dos painéis de azulejos da nave central, um projeto financiado pela European Fine Art Foundation (TEFAF), organizadora da prestigiada Feira de Arte e Antiguidades de Maastricht. A operação foi feita à porta fechada, mas a partir de agora, com a abertura do novo espaço, o público vai poder acompanhar a evolução dos trabalhos e ver com os próprios olhos o que está a ser feito com o dinheiro com que contribuiu.

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O restauro da Capela das Albertas — “uma espécie de reivindicação não só do museu mas também dos públicos, que viram a capela há mais de dez anos e perguntam quando é que abre”, como afirmou o diretor do MNAA — está dependente de uma série de condicionantes, nomeadamente do “ritmo de reunião de verbas”, mas também de outras questões mais técnicas. Orçamentado em 300 mil euros, António Filipe Pimentel tem dúvidas de que essa quantia seja suficiente. “Bom, é um princípio e provavelmente não andará longe disso, mas tenho dúvidas de que chegue”, confessou. “Vamos andando em vendo.”

A ideia inicial era de que os trabalhos de conservação e restauro da Capela das Albertas tivessem concluídos em 2020, mas isso também não é certo. “Se conseguirmos um bom ritmo de intervenção e uma mobilização coletiva e das próprias instituições públicas, que estaria finalmente na altura de apoiarem também, em dois anos conseguimos restaurar, penso eu, a capela. A questão é se as intervenções conseguem ser seguidas ou mesmo simultâneas. Tem muito a ver com ritmo”, explicou o diretor. Para já, o MNAA tem reunida uma verba de mil e poucos euros. Não é muito, mas já é um princípio.