“Uma receita de outro mundo”; “Um prato para provar e ficar a ver estrelas”; “Comida que parece de outro planeta” — os trocadilhos possíveis sobre a nova aventura do chef Kiko são infinitos. Piadas à parte, porém, não deixa de ser caso sério o facto de o cozinheiro português estar bem encaminhado para ter uma receita sua a figurar na ementa dos futuros exploradores de Marte. Tudo isto pode soar estranho, mas é real e perfeitamente explicável.

“Isto começou há uns tempos, n’O Talho, quando apareceu lá um tipo a dizer que precisava de falar comigo sobre a possibilidade de enviar comida minha para Marte”, começa por explicar Kiko Martins, o responsável por espaços lisboetas como A Cevicheria, O Asiático ou O Poké. Segundo o que explicou ao Observador, nessa noite, quem recebeu a mensagem foi o seu sócio (o chef estava fora) e tudo aquilo pareceu uma maluquice. Quis o acaso que nesse mesmo dia, quando Kiko estava a estacionar ao pé de casa, se cruzasse de novo com o “marciano”. “Ele parou ao meu lado, ainda de capacete, e só quando levantou a viseira é que vi que era o Nuno, um amigo meu”, relata. E assim começou a aventura.

O inusitado mensageiro era Nuno Chabert, o fundador do site Bit2Geek — um portal português de divulgação de notícias ligadas à exploração espacial onde colaboram vários cientistas lusos espalhados pelo mundo — e amigo de juventude do cozinheiro. Aquilo que lhe pretendia contar era que o Centro de Astrobiologia de Madrid, um afiliado da NASA, tinha lançado um concurso internacional, direcionado a chefs de cozinha, que pedia a elaboração de uma receita que pudesse ser confecionada em Marte, no futuro, quando os primeiros colonos humanos partissem rumo à exploração do Planeta Vermelho.

“Estamos numa altura de viagens para o espaço. O primeiro concurso da NASA para empresas que pretendam fazer parte da colonização de Marte foi anunciado há coisa de uma semana, a Estação Internacional Espacial tem de ser abandonada até 2024 porque os materiais já não aguentam e vai ser construído o Loop G Gateway — um portal para se construir naves espaciais em órbita”, explicou ao Observador o mesmo Nuno, que com segurança afirmou ainda:

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“Os primeiro passos para uma primeira missão a Marte vão ser dados nos anos 20/30 (só falta resolver o problema da radiação espacial que os astronautas terão de enfrentar na viagem).”

De facto, nos últimos tempos têm sido vários os avanços e projetos lançados com a exploração espacial em mente. Um desses é precisamente este concurso, caricatamente nomeado de “La Patata Marciana” — “A Batata Marciana”, em português.

“La Patata Marciana”

Cinéfilos mais atentos lembrar-se-ão do filme “Perdido em Marte”, que estreou em 2015 e tinha Matt Damon como protagonista. Na película, Damon interpretava o papel de um botânico da NASA que tinha sido enviado para Marte numa missão exploratória juntamente com outros colegas. Resumindo a narrativa, tudo corre mal, ele vê-se isolado no planeta e forçado a plantar alimentos para sobreviver. Aquilo que melhor “pega” é, precisamente, a batata.

Apesar de soar estranho, a escolha deste tubérculo não surge por acaso. Corria o ano de 2015 quando a própria NASA e um conjunto de especialistas internacionais começaram a testar o potencial da batata enquanto espécie que pode ser plantada em Marte. Apesar de ainda deixar muitas dúvidas no ar, a experiência “Potatoes on Mars” deixou boas indicações de sucesso, de tal forma que foi esse o ingrediente escolhido para base deste concurso.

Os pratos propostos, portanto, teriam de ter o tubérculo como base — as variedades Unica (oriunda dos continentes americanos) e Desirée (variante europeia) — e seguir à risca todos os critérios e limitações inerentes do consumo e confeção de comida no espaço.

“Demos sugestões de alimentos que pudessem ser conservados a longo prazo, técnicas de conservação e procedimentos que funcionariam bem em ambientes com micro-gravidade”, conta Nuno.

Foi com este papel quase de consultor científico que a comunidade de “cientistas ligados ao espaço e à exploração espacial” da Bit2Geek ajudou o cozinheiro português a elaborar a sua receita e apresentá-la a concurso. O mesmo começou “em setembro” e terminou no passado dia 10 de dezembro — só agora foi comunicado porque, explica Nuno, “quisemos manter a receita em sigilo”.

O que acontecerá de seguida é toda uma fase de avaliação da receita, que será feita por um painel de cinco jurados, “pessoas de reconhecido prestígio no mundo da restauração e da investigação marciana”, como se lê no site do concurso, e que, no final — “espero que em fevereiro já possamos anunciar que o chef Kiko venceu”, clamou Nuno de sorriso na cara –, receberá um prémio monetário de dois mil euros e a entrada “na órbita” dos estudiosos que estão a preparar a aventura do Homem no Planeta Vermelho.

“Não sabemos ao certo quantas pessoas participaram”, explicou o representante da Bit2Geek, mas o mesmo arrisca a dizer que “houve grande participação de cozinheiros latino-americanos”, algo que não surpreende dado o papel histórico e cultural que a batata tem nesses países — o Centro Internacional da Batata, no Peru, é um dos organismos que apoiam o evento, por exemplo.

“Uno, Dos, Tres… Marte”

“Acho isto altamente interessante. Gostava muito de ganhar uma coisa destas porque é uma coisa muito fora”, contou ao Observador o chef Kiko. O cozinheiro, que ainda não tem nenhuma estrela Michelin, mas que, com este projeto, arrisca-se a ter uma “estrela” quase real, explicou que o nome da receita que propôs é “Uno, Dos, Tres… Marte” e consiste numa “espécie de bolinho de bacalhau” que não é frito mas combina ingredientes como puré de batata, bacalhau, alho, ovo, azeitonas, coentros e chouriço. A grande maioria dos ingredientes são desidratados ou liofilizados, para garantir um período de preservação mais elevado, para que possam aguentar o tempo que demoraria uma eventual viagem — da Terra a Marte demora-se, aproximadamente, nove meses. Esta informação pode fazer lembrar aquelas sanduíches de gelado que são vendidas como comida de astronauta e vêm dentro de um pacote, mas Kiko quis fazer algo completamente diferente desses alimentos sensaborões e aborrecidos.

“Eu não faço a comida para mim, faço para os outros, por isso o que pensei foi: se chegar a Marte já é complicado e estar por lá é dificílimo, alimentar-se lá será ainda mais complexo. Não estou a imaginar as pessoas que lá cheguem a cozinhar com facas, fogo, tábuas de cortar, etc.”, afirma Kiko. Apesar disso, segundo a lógica do cozinheiro, qualquer coisa que por lá seja confecionada tem de incluir o “meter a mão nas coisas que vamos comer”, algo que segundo o próprio “diferencia-nos dos animais”. A forma que encontrou para garantir isto foi uma receita em que o “astro-cozinheiro” tem de misturar vários ingredientes antes de comer o produto final. “Quis fazer uma coisa que tivesse o mínimo de cozinha possível mas que tivesse algum elemento disso. Se não tivesse era como se abríssemos uma ração militar e pronto.”

Para ele, o simples facto de se “abrir um saco com azeitonas desidratadas, outro com ovo liofilizado, batata e bacalhau” traz humanidade à processo, um certo aconchego de reconhecer alimentos individuais e dar-lhes forma. Outra característica do processo de confeção deste “Uno, Dos, Tres… Marte” é a componente estética, que também não foi esquecida: o astronauta terá de envolver o puré de batata, o bacalhau e todos os outros condimentos numa bola, envolvê-la no chouriço desidratado em pó e pintalgá-la com ovo liofilizado nos topos e juntar-lhe, também por fora, uns montinhos de azeitona desidratada de forma que, no final, aquilo que se terá na mão possa ser uma miniatura do próprio planeta marciano. “Ele até usou a azeitona para replicar os montes Tharsis e o ovo a fazer de polos de água congelada!”, exclamou Nuno, entusiasmado. Esta espécie de “bolinho de bacalhau”, um símbolo da gastronomia portuguesa, devia ser motivo de orgulho nacional, diz Kiko. Apesar disso, esta não foi a ideia inicial que lhe passou pela cabeça.

O “prato” que o chef Kiko criou para ser confecionado em Marte.

“No início estava convencido que tinha de ser uma sanduíche”, afirmou. Contudo, esse tipo de confeção é demasiado associado a coisas que se comem “com pressa”, quase nem é uma refeição no sentido pleno da palavra. Kiko queria algo “mais versátil” e estes bolinhos acabaram por ser o final ideal. “Pode-se comer apenas um enquanto snack, por exemplo, ou juntar uns três e fazer uma refeição mais a sério, quase como se fossem almôndegas.”

O chef Kiko diz que hoje em dia, o crescimento do seu império gastronómico afasta-o muitas vezes dos fogões, mas não é por isso que deixa de cozinhar. “Hoje cozinho muito com a cabeça, penso em pratos e combinações todos os dias, especialmente quando vou correr”, afirma. No final dos seus treinos, costuma assentar tudo aquilo em que pensou e, nessas anotações, figuraram pormenores deste resultado final.

“Foi um processo muito giro [o da elaboração da receita]. O Nuno mandava-me mensagens a perguntar o que estava a fazer e eu só lhe pedia tempo para pensar no que queria fizer. Fiquei uns dois ou três dias sem lhe dizer nada e ele ficou super ansioso”, clamou o cozinheiro.

Quando tudo culminou na proposta que foi entregue à competição, Nuno provou e quase se emocionou. “É uma coisa muito especial, pensar que podemos ter o prato de um português a ser servido algures por aí, no Universo”, diz. “Estou convicto que ele vai ganhar, não falta nada à proposta que ele fez!”. Kiko é mais cerebral, mas não é isso que lhe tira confiança: “Para aquilo que é, é uma coisa que assenta muito bem. Estamos no bom caminho, fizemos o trabalho e os estudos bem feitos”. Agora é só esperar.