O pós-Alex Ferguson não tem sido fácil para o Manchester United. No dia em que o treinador escocês anunciou que tinha chegado a hora de se reformar, a 8 de maio de 2013, as ações do clube na bolsa caíram 5% e um período de aparente nostalgia e vazio instalou-se em Old Trafford. David Moyes, Louis Van Gaal e José Mourinho, os três homens que se sentaram no banco técnico dos red devils desde a saída de sir Ferguson, falharam na conquista de títulos, na manutenção da estabilidade e na captura de uma filosofia que passa de geração em geração e torna o United bem mais do que um clube.

Era essa a principal crítica feita a José Mourinho durante os dois anos e meio que o treinador português passou em Manchester: os adeptos diziam que Mourinho não percebia a essência do clube, não respeitava os princípios que Ferguson eternizou e não jogava como os red devils sempre jogaram. Por muito consagrado, elogiado e titulado que o português fosse, tinha um problema que não podia solucionar — não era da casa. Não era mobília. Tal como Moyes e Van Gaal. A grande maioria dos adeptos do Manchester United está ainda habituada a olhar para o banco técnico e a ver alguém que entra pelo ecrã da televisão todos os domingos. Alguém familiar. E essa sensação de familiaridade, conforto e proximidade não existe desde maio de 2013.

Mourinho foi despedido esta terça-feira. Não deixou saudades e nem os três títulos que deixou no museu do clube refreiam os sentimentos negativos: na opinião dos adeptos, as conquistas aconteceram “apesar de Mourinho” e não por causa dele. As notícias e os rumores sobre o substituto do treinador português começaram a surgir, invariavelmente, poucas horas depois de a saída se tornar oficial. Mauricio Pochettino, Zinedine Zidane, Laurent Blanc e Antonio Conte foram os nomes mais repetidos, mas todas as notícias apontavam com um grau de certeza superior ao normal a escolha de um treinador interino que iria orientar a equipa até ao final da época. Esta quarta-feira, um dia depois de Mourinho ser despedido, esse cenário foi confirmado e o nome escolhido era também aquele que tinha sido avançado vezes sem conta — Ole Gunnar Solskjær.

O norueguês usou o número ’20’ durante os onze anos que passou em Old Trafford

A aposta para trazer de volta a era Ferguson

O norueguês foi jogador de futebol profissional durante 17 anos. Desses 17, onze foram em Old Trafford. Solskjær, atualmente com 45 anos, é treinador do Molde da Noruega, clube onde começou a dar nas vistas, mas vai orientar os red devils até ao final da temporada — para depois regressar ao país de origem. É a aposta de Ed Woodward, vice-presidente do clube, e da família Grover, os proprietários, para trazer de volta a aura que parece ter escapado ao Manchester United. É a aposta para trazer de volta a era Ferguson.

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Assim que completou 17 anos, Solskjær cumpriu um ano de serviço militar obrigatório antes de assinar pelo Clausenengen, da terceira divisão norueguesa. Depois de cinco temporadas — e após ter marcado 31 dos 45 golos da equipa em 1995 –, chamou a atenção de Åge Hareide, então treinador do Molde, que mais tarde acabaria por ser selecionador nacional da Noruega. Os 31 golos que marcou em 38 jogos na estreia no principal campeonato norueguês atraíram a atenção dos alemães do Hamburgo e dos italianos do Cagliari mas Hareide, consciente de que o avançado estava destinado a outros voos, contactou o Everton e o Manchester City e pediu 1,2 milhões de libras pela transferências. Ambos os clubes recusaram a oferta e o Manchester United fez uma proposta única de 1,5 milhões. O Molde aceitou de imediato e Solskjær, então com 23 anos, assinou pelo clube onde acabaria por passar mais de uma década.

A contratação foi para lá de surpreendente. Que o Manchester United precisava de um avançado, todos sabiam — Eric Cantona tinha terminado a carreira, Brian McClair assumia agora funções mais recuadas no terreno, Mark Hughes transferiu-se para o Chelsea e restava apenas Andy Cole. Nenhum jogador do clube vencia a Bota de Ouro desde que George Best a tinha conquistado em 1968 e Alex Ferguson atravessava o período menos concretizador dos 21 anos que passou em Old Trafford. Existia um preferido: Alan Shearer, então avançado do Blackburn Rovers que tinha acabado de ser o melhor marcador do Campeonato da Europa de 1996, ao serviço da seleção inglesa. Mas o interesse do Manchester United de nada valeu, já que Shearer só precisou de saber que o Newcastle o queria para escolher de imediato o clube da cidade onde nasceu (na altura, os 15 milhões de libras da transferência foram um recorde mundial).

Solskjær foi a solução que Alex Ferguson encontrou para as lacunas no setor ofensivo mas rapidamente se percebeu que o norueguês seria um jogador para saltar o banco e não um habitual titular. E, para depreender isso, bastou ver o jogo de estreia: o avançado entrou em campo por volta da hora de jogo e só precisou de seis minutos para empatar um jogo frente ao Blackburn que estava difícil de resolver. Nesse primeiro ano, marcou 18 golos e ajudou o Manchester United a conquistar a Premier League com sete pontos de vantagem para o segundo classificado. Esse jogo foi a amostra daquilo que seria a carreira de Solskjær em Old Trafford: o norueguês, muito acarinhado pelos adeptos, rapidamente ganhou a reputação de super sub — super substituto — pelo número elevado de golos que marcava quando saltava do banco e pela quantidade de jogos que resolvia no último quarto de hora da partida. Realizou 366 jogos pelo United: desses, saltou do banco em 150. Marcou 126 golos: desses, 50 foram na última meia hora de jogo e 33 aconteceram nos últimos 15 minutos.

Solskjær foi colega de equipa de David Beckham e de Roy Keane

O segredo para marcar tantos golos depois de saltar do banco

Há alguns anos, em entrevista à revista norueguesa Josimar, explicou o segredo para marcar tantas vezes quando saltava do banco. “Provavelmente não analisava o jogo todo. Pensava em mim, para onde ia quando entrasse, onde é que poderia causar mais estragos. O Thierry Henry podia fazer o que ele quisesse, isso era preocupação do Jaap Stam. Eu prestava atenção ao que faziam os médios-centro e os centrais”, disse Solskjær. Em vez de olhar para os que desempenhavam a mesma função que ele, analisava as movimentações daqueles que o iam tentar anular. Estudava as jogadas, os erros, os passos em falso; e tentava provocá-los. Sentado no banco, imaginava e programava o golo que ia marcar quando fosse chamado. E de todos os que conseguiu concretizar, um foi mais importante do que todos os outros.

Na reta final da temporada 1998/99, Solskjær rejeitou uma proposta do Tottenham — que o Manchester United já tinha aceitado — e e decidiu ficar em Old Trafford, mesmo sabendo que não seria titular de uma forma regular. “Naquela altura, ele podia ser titular em qualquer outra equipa da Premier League. Era um finalizador maravilhoso, um dos melhores que vi”, revelou Alex Ferguson há alguns anos. Na final da Liga dos Campeões daquela época, os red devils defrontavam o Bayern Munique em Camp Nou. Os alemães estavam a vencer desde os seis minutos, graças a um golo de Mario Basler, e Teddy Sheringham acabou por empatar a partida já durante os minutos de tempo extra. 30 segundos depois, canto para o Manchester United. David Beckham cruzou, Sheringham amorteceu e Solskjær só precisou de esticar o pé direito para desviar para o topo das redes defendidas por Oliver Kahn. O super sub voltava a fazer das suas e desta vez resolvia um jogo onde os ingleses foram sempre inferiores. Semanas antes, estava na porta de saída; em Barcelona, marcou o golo que valeu o terceiro título europeu dos red devils na década de 90 (depois da Taça dos Campeões Europeus e da Supertaça Europeia em 1991).

Depois de três temporadas irregulares e inconstantes, devido a lesões prolongadas que o afastaram dos relvados, terminou a carreira em agosto de 2007. Mantém o recorde de jogador do Manchester United que mais golos marcou enquanto substituto utilizado (28) e na despedida referiu-se a Old Trafford como “casa” e a Alex Ferguson como “o patrão”. A visão de jogo que adquiriu ao longo dos anos e as análises profundas que realizava a partir do banco tornaram óbvio passo seguinte: depois de fazer parte da equipa técnica de Ferguson na temporada 2007/08, enquanto técnico dos avançados, acabou por assumir a orientação da equipa de reservas dos red devils. Em 2010, quando Åge Hareide — que o treinou no Molde — se demitiu do cargo de selecionador nacional norueguês, Solskjær foi a primeira bola a sair do saco. Recusou e garantiu que não estava preparado. Mas regressou à Noruega, numa espécie de conto do bom filho a casa torna, para orientar o Molde.

Enquanto treinador do Cardiff, onde só ficou de janeiro a setembro de 2015

Conquistou dois campeonatos noruegueses, rejeitou o convite do Aston Villa e aceitou o desafio do Cardiff — contra quem, curiosamente, se vai estrear aos comandos do United no próximo sábado. No País de Gales, teve o primeiro banho de realidade: ficou apenas de janeiro a setembro, perdeu os últimos cinco jogos da temporada e o clube foi despromovido ao Championship, o segundo escalão do futebol inglês. “Aprendi muito em Cardiff e não quero apagar essa fase. Refleti muito sobre tudo o que aconteceu e percebi que talvez não fosse tão bom e tão maturo como na altura achava que era”, reconheceu mais tarde. Regressou ao Molde em outubro de 2015 e no início deste mês de dezembro os noruegueses anunciaram que o treinador tinha renovado contrato até 2021. Mas Solskjær teve de voltar a casa para restabelecer o espírito familiar que parece ter escapado há tanto tempo.

É impossível mensurar o afeto e a proximidade que Solskjær sente com Old Trafford e com o Manchester United. Na Noruega, era frequente comparar os jogadores que treinava a jogadores do clube inglês, mesmo que o paralelismo fosse absurdo e a roçar a hipérbole: mas os únicos exemplos que o técnico conhece atuam sempre no Teatro dos Sonhos. A reverência a Alex Ferguson, essa, é inequívoca. “Ele significou quase tudo para mim enquanto joguei. A primeira vez que ganhei alguma coisa na vida foi com ele. Aprendi a ser um bom vencedor e um mau perdedor. Aprendi a ser um treinador, a ser um gestor. Aprendi tudo”, disse no princípio deste ano. Ole Gunnar Solskjær regressa ao Manchester United para tentar ser aquilo que Old Trafford viu durante 11 temporadas — um super substituto.