O erro de Claas Relotius, jornalista estrela da alemã Der Spiegel, foi intencional, feito de forma metódica e com intenções criminosas. É a própria publicação que o garante. Às suspeitas de que o premiado jornalista estivesse a fabricar excertos, personagens e histórias, seguiu-se a penosa confissão — penosa para quem fica e continua a trabalhar na revista. Claas Relotius demitiu-se a pedido do jornal e já devolveu os prémios que em tempos recebeu pelos seus trabalhos. De prodígio e estrela em ascensão passou a protagonista de um escândalo que está a abalar a imprensa internacional e que fez lembrar, num ápice, a história já transformada em filme de Stephen Glass.

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Relotius terá fabricado factos e fontes em mais de uma dúzia de artigos num período de sete anos — a investigação continua e ainda é cedo para garantir o número exato de artigos afetados. As primeiras suspeitas surgiram na sequência da publicação, em novembro de 2018, do artigo “Jaeger’s Border” sobre um grupo vigilante de norte-americanos que patrulha a fronteira dos Estados Unidos com o México. Juan Moreno, coautor do artigo em questão, escrito para a Der Spiegel, desconfiou da veracidade de algumas informações, relatou as suas preocupações à revista, não cedeu e tirou partido de uma viagem aos EUA, com outro propósito jornalístico, para reunir informações incriminatórias sobre Relotius. “Moreno passaria por três ou quatro semanas de inferno porque os seus colegas e editores seniores em Hamburgo não acreditaram inicialmente que Relotius poderia ser nada mais do que um mentiroso”, escreve a Der Spiegel.

Primeiro, Relotius negou as alegações de que tinha forjado informações. A confissão só chegou na semana passada, quando admitiu ter inventado passagens inteiras — não apenas no artigo “Jaeger’s Border”, mas em muitos outros. Em alguns dos textos incluiu indivíduos que nunca chegou a conhecer e com quem nunca chegou a falar, contou as suas histórias com propriedade e chegou a citá-los. Relotius acabaria por revelar que baseava essas descrições em informações trabalhadas por outros meios. “Ao fazê-lo, ele criou personagens complexas de pessoas que de facto existiam, mas cujas histórias fabricou. Ele também inventou diálogos e citações”, explica a Der Spiegel. “Agora é claro que Claas Relotius, de 33 anos, um dos melhores escritores da Der Spiegel, vencedor de múltiplos prémios e um ídolo jornalístico para a sua geração, não é nem um repórter nem um jornalista. Ao invés, ele produz ficção muito bem narrada”, lê-se num dos artigos da publicação. Durante a confissão, o jornalista admitiu: “Foi por medo de falhar. A pressão para não falhar cresceu à medida que me tornava mais bem sucedido”.

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O facto de Relotius ter escapado durante anos às medidas de fact-checking da revista é “particularmente doloroso e levanta questões sobre a estrutura interna que devem ser resolvidas o quanto antes”, admite a Der Spiegel. A publicação faz mea-culpa em diversos artigos: num deles consta o relato de dois residentes da cidade norte-americana Fergus Falls no estado de Minnesota, que chegou a ser contemplada num trabalho do jornalista — “In a Small Town”, publicado em março de 2017. Os dois locais fizeram um fact-check da reportagem de Relotius, que alegadamente passou um mês em reportagem neste destino, e o veredicto é “devastador“. Na passada quarta-feira, depois de a Der Spiegel ter revelado publicamente a fraude interna, Michele Anderson e Jake Krohn publicaram as suas descobertas online: “Em 7.300 palavras ele acertou na população da cidade e na temperatura média anual, entre outras coisas básicas, como os nomes de empresas e de figuras públicas, coisas que uma criança conseguiria descobrir numa pesquisa no Google. O resto é ficção desinibida”.

Entre as mentiras mais “absurdas”, tal como categorizam os dois locais, está o facto de o jornalista ter situado a cidade numa “floresta negra”, ao invés do prado onde realmente se encontra, e a descrição do “administrador da cidade” dá conta de um homem que nunca teve uma namorada e que anda sempre armado, uma relato que também não é coerente com a verdade.

Claas Relotius — um dos jornalistas mais bem sucedidos na Alemanha — começou a escrever para a Der Spiegel enquanto freelancer. Há sensivelmente um ano e meio ascendeu a editor. Desde 2011 escreveu cerca de 60 artigos publicados, tanto na revista como no site — 14 deles incluem informações fabricadas, segundo confessou. Alguns dos trabalhos em causa foram nomeados para prémios, outros chegaram mesmo a ser distinguidos. São exemplo: “The last witness”, sobre um norte-americano que alegadamente viaja para uma execução enquanto testemunha, “Lion Children”, sobre duas crianças iraquianas que foram raptadas e educadas pelo Estado Islâmico, e “Number 440”, sobre prisioneiros em Guantánamo. A Der Spiegel acrescenta que o jornalista chegou a escrever para outras publicações alemãs e internacionais, mas não sabe precisar se tais trabalhos foram adulterados.

Enquanto a revista continua as investigações — com recurso a uma comissão feita de membros internos e externos à publicação –, os artigos assinados por Relotius vão permanecer no arquivo online da publicação sem quaisquer alterações, apenas com a nota sobre estes desenvolvimentos.