Organizações dos direitos humanos mostraram-se esta sexta-feira preocupadas com o avanço do Islão na Guiné-Conacri, depois de o parlamento ter legalizado a poligamia na última sessão legislativa de 2018, apesar da oposição do Presidente Alpha Condé.

“A aprovação desta lei evidencia uma progressão inquietante da corrente religiosa muçulmana face ao laicismo do Estado, muito pronunciada na última década”, afirmou Frédéric Foromo Loua, presidente da organização não-governamental (ONG) da Guiné-Conacri Mêmes Droits pour Tous (MDT, os Mesmos Direitos para Todos), em declarações à Lusa, pelo telefone. “Até agora, o Governo [de Ibrahima Kassory Fofana, em funções desde maio de 2018] não tomou as medidas apropriadas para controlar tudo o que se passa”, acrescentou o ativista.

A legalização da poligamia para os homens, até um limite de quatro mulheres — consagrando preceitos muçulmanos estabelecidos pelo Alcorão — passa a estar inscrita no novo código civil da Guiné-Conacri — uma lei de 1968, revista apenas em 1983, e cuja reforma vinha a ser alvo de uma acesa discussão política e pública desde há cerca de um ano e meio.

Entretanto, “inesperadamente”, segundo Frédéric Loua, na última sessão legislativa do Parlamento, em Conacri, em 29 de dezembro último, a revisão do código civil foi aprovada por uma maioria de 37 votos contra 26 e sem a presença das deputadas de todas as cores políticas, que se recusaram a votar a lei.

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“Esta lei está para ser revista desde 1983 e essa revisão tem sido sempre adiada por causa da questão da poligamia. Não sabemos por que é que as coisas foram aceleradas no final do ano, mas o que aconteceu foi a votação da lei. Entretanto, há uma boa parte do Governo que não está de acordo e sabemos agora que também o Presidente se opõe”, afirmou o líder do MDT.

Foi o próprio chefe do Governo, Kassory Fofana, citado pela comunicação social guineense, que anunciou esta quarta-feira, à saída de um encontro com um grupo de mulheres que militam contra o novo código, que o Presidente Alpha Condé se opõe à aprovação da poligamia, acrescentando que o seu executivo irá rever a questão.

“É uma grande confusão”, conclui o ativista guineense. “Não sei o que vai acontecer. A lei foi votada, não sei se [o Presidente de República] irá promulgá-la ou reenviá-la ao Parlamento. O que sabemos é que a lei foi votada e que abre a possibilidade aos guineenses de se casarem com várias mulheres em matrimónio civil”, acrescentou Frédéric Loua.

Alcine Salls, membro da Organização Guineense dos Direitos do Homem e do Cidadão (OGDH), sublinhou à Lusa, também em declarações pelo telefone, que “a Guiné-Conacri ratificou todas as convenções internacionais sobre a promoção dos direitos das mulheres, sobre a promoção dos direitos das crianças”, e que, “portanto, não pode com esta lei colocar-se à margem do direito internacional”.

O mesmo ativista dá, no entanto, voz a um coro generalizado de opiniões no país que apontam a necessidade de o Parlamento mexer numa lei que criminalizava até agora uma prática — o casamento religioso de um homem com até quatro mulheres — altamente generalizada na Guiné-Conacri, um Estado laico com uma população maioritariamente muçulmana (mais de 90%).

“A nova lei reflete a realidade na Guiné-Conacri”, acrescenta Salls. “Há muitos magistrados que são polígamos, há deputados na Assembleia nacional que são polígamos, há membros do Governo que são polígamos. Tratava-se de adequar a lei à realidade social na Guiné”, afirmou, acrescentando que durante a discussão pública do anteprojeto, aquela ONG defendeu “que a lei deveria adequar-se à realidade e consagrar um regime de opção que permitisse, ao mesmo tempo, a monogamia e a poligamia”.

“É verdade que a poligamia está muito enraizada em toda a cultura do país”, concedeu também Frédéric Loua, reforçando, porém, que “não era permitida em lei e agora passa a ser legal, caso este processo legislativo chegue ao fim, muito por força do crescimento da corrente religiosa”.

“Nós, enquanto defensores dos Direitos Humanos, não podemos ser a favor da aprovação da poligamia. A poligamia é contrária aos acordos internacionais assinados pela Guiné Conacri. É preciso que a Guiné respeite os seus compromissos internacionais”, reforçou o presidente da MDT.

Toda esta indecisão é tanto mais penalizadora quanto o novo código está recheado de medidas reclamadas pelas organizações defensoras dos Direitos Humanos. “Esta lei tem muitas medidas que aprovamos; por exemplo a questão da autoridade parental, que passa a ser exercida conjuntamente pelo pai e pela mãe, assim como outros direitos da mulher, como a interdição da mutilação genital feminina, e outras inovações”, diz o presidente da MDT.

“A lei, no seu conjunto, não é má. É a aprovação da poligamia que suscita muitos problemas e inquietações, quando considerado o desenvolvimento das correntes religiosas no país na última década”, resumiu Frédéric Loua.