Luís Filipe Vieira não é propriamente um presidente que faça muitas intervenções. Entrevistas, ainda menos. Vai escolhendo a dedo os timings em que fala, consoante os assuntos que considere mais ou menos pertinentes, sempre com o objetivo final de marcar a agenda. Depois da goleada sofrida pelo Benfica em Munique frente ao Bayern, a 27 de novembro, o presidente dos encarnados falou apenas na conferência de imprensa em que explicou a permanência de Rui Vitória por decisão pessoal e aproveitou o jantar de Natal do clube, a 13 de dezembro, para enaltecer o caminho das águias nos últimos anos em contraponto com as dificuldades financeiras dos rivais. De resto, nada mais. Pelo menos até esta segunda-feira.

As explicações de Vieira, da reunião que colocou Vitória de saída à reflexão de madrugada que alterou decisão

Na última quinta-feira, dia em que o Benfica esclareceu à CMVM o princípio de acordo para a rescisão de contrato com o técnico Rui Vitória (a confirmação chegaria no dia seguinte, também por comunicado), Luís Bernardo, diretor de comunicação do clube, colocou como data para o arranque do processo de contratação do novo treinador o dia 7. Durante o fim de semana, foram muitos os alegados contactos exploratórios que vieram à baila na imprensa, com especial destaque para o antigo treinador do Manchester United, José Mourinho, mas nada confirmado pelos encarnados. E foi neste contexto que Luís Filipe Vieira foi um dos convidados da estreia do “Programa da Cristina”, na SIC, apresentado por Cristina Ferreira.

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A conversa já estava agendada antes de todo o turbilhão que se viveu na semana passada na Luz, com a quebra de ligação com o técnico que ganhou seis títulos durante três anos e meio, e assim se manteve, mesmo sabendo de que, apesar de grande parte da entrevista querer sobretudo olhar para a parte mais pessoal do líder dos encarnados, seria abordada a questão do novo treinador e do futuro do futebol do Benfica. E Vieira não se coibiu a dar a perspetiva sobre a saída e o próximo técnico, apesar de salienta sempre que qualquer decisão será apenas conhecida na próxima semana – ou seja, Lage fará pelo menos o encontro frente ao Santa Clara, nos Açores, a contar para a 17.ª e última jornada da primeira volta do Campeonato, e também os quartos de final da Taça de Portugal, com uma sempre complicada deslocação a Guimarães para defrontar o Vitória.

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“Com o 2-0 é lógico que fiquei preocupado mas depois com a reação da equipa, foi deixar andar”, comentou de início sobre o encontro frente ao Rio Ave da véspera, que o conjunto agora comandado por Bruno Lage venceu por 4-2 com bis de João Félix e Seferovic. “As pessoas ainda vão ter muitas saudades de Rui Vitória. Qual é a câmara? Rui, um abraço – estamos juntos sempre. Se foi ele que quis sair? Sim, foi ele colocou o lugar à disposição e acertámos tudo. Conheço o Lage há muitos anos, foi uma boa prestação. Vai continuar mas a decisão final só para a semana. Para a semana, só para a semana. Jesus? É meu amigo. Hipótese? Aqui não há hipóteses, a única hipótese é o Bruno Lage. Se ele gostava de voltar? Todos gostavam de estar no Benfica. Ainda ontem falei com o presidente do V. Guimarães, que fez um comunicado muito chateado, a explicar que não houve interesse nenhum nos treinadores que têm vindo aí. Todos os dias vão aparecendo treinadores novos para o Benfica”, começou por referir Luís Filipe Vieira sobre a questão do novo treinador das águias.

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“Mourinho? Sou amigo dele. Não há futuro treinador nenhum, só para a semana. Não há treinadores de sonho, só treinadores que podem garantir o sucesso. Quem é que não gostava de ter Mourinho? Se dissesse que sim amanhã vinha logo, dinheiro não era problema. Ainda não pensei nisso do treinador, veja lá. Não é algo que me deixe dormir bem mas temos de tentar…”, prosseguiu, mesmo tentando esconder o jogo em relação ao que pode acontecer a nível técnico no futuro. “Bruno Lage tem o perfil para ser treinador do Benfica porque todo o sucesso vai passar pela Caixa Futebol Campus”, admitiu ainda assim.

Das lágrimas com o boné do pai à resposta às críticas e acusações

“Nunca sonhei ser presidente do Benfica, isso nunca. Nasci benfiquista, frequentei o estádio da Luz, ia à pendura nos elétricos para depois entrar. Como começou? Há uma pessoa que me diz que tinha de candidatar porque tinha de salvar a maior marca do país. Falei com o Manuel Vilarinho, que ia concorrer, e não quis dividir. Passados uns meses, foi ele que me ligou, a dizer que tinha de ir para o pé dele. Nunca encarei como se fosse um lugar de poder. Somos seis milhões, pelo mundo inteiro somos 14 ou 15 milhões, mas não me sinto poderoso. Quando cheguei consegui retirar a palavra do ‘eu’, passámos a ser ‘nós’ – foi assim que conseguimos chegar onde chegámos, a criação da credibilidade conseguimos”, salientou, antes da emoção ao recordar o pai, que ainda o viu como presidente antes de falecer em 2007. “Acho que está bastante orgulhoso de mim. Ele, a minha mãe, os meus amigos e os benfiquistas também”, atirou, antes de soltar as lágrimas ao falar do boné com que anda sempre e que pertencia ao pai: “Tenho sempre comigo e vai comigo para o caixão”.

“Tenho a tese que um grande homem não faz coisas extraordinárias, um líder é que sendo muito simples consegue fazer coisas extraordinárias. Veja o exemplo do Presidente da República, a forma tão simples como gere tudo e consegue unanimidade à volta dele. As críticas? Corrupto nunca fui na minha vida, dever dinheiro toda a gente sabe que não devo, tenho todas as situações regularizadas mas nestes cargos as pessoas falam sem conhecer. Cânticos para a minha saída [n.d.r. falando do que se passou após o final do jogo com o Rio Ave, em que parte da bancada onde se concentra a claque No Name Boys cantou ‘Só falta o Vieira’]? Logicamente que me magoou. Não preciso de dar provas a ninguém da obra feita no Benfica”, disse, falando também no Seixal, que continua a colocar como chave do futuro dos encarnados: “É o grande orgulho dos benfiquistas mas ainda vai ser mais porque queremos fazer mais seis campos de futebol, além da escola internacional para os miúdos continuarem a estudar”.

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Mas a conversa entre Cristina Ferreira e Luís Filipe Vieira, que teve até um jogo da bisca pelo meio (que foi ganho pelo presidente dos encarnados “com uma grande tareia”), versou sobretudo o outro lado mais pessoal do líder do Benfica, “que gosta muito de vestir ganga”, além dos fatos de treino, e não gosta muito de fatos, “que usa porque tem de ser”. “Sempre fui um bairrista. Sou filho único, cresci no Bairro das Furnas e gosto muito de lá ir, apesar de não ter nada a ver com o que era. Ali nos bairros éramos todos conhecidos uns dos outros, passávamos e dizíamos sempre ‘Bom dia vizinho’ ou ‘Boa tarde vizinha’. Brincávamos muito às escondidas, a jogar à bola que nunca tive muito jeito, a imitar que jogávamos hóquei. Os tempos eram outros… Olhe, não havia por exemplo máquinas de lavar mas sim tanques para lavar a roupa. Costumava dizer que quando as mães iam lavar roupa era o Diário de Notícias do bairro, porque saía de lá e sabia tudo o que tinha andado a fazer”, recordou.

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Depois da quarta classe, “porque até aí correu tudo bem”, acabou por começar a trabalhar. “Não tinha vocação para estudar”, explicou, antes de passar os vários locais onde foi trabalhando, desde a empresa de bicicletas à empresa elétrica, passando depois pelo negócio dos pneus. Conheceu entretanto Vanda, com quem falou pela primeira vez para fazer uma cobrança ao telefone. “Não sei o que teve aquela chamada, se foi a voz, não sei… Costumava dizer que era um telefonema que fazia sempre com bastante agrado”, atirou entre gargalhadas. “Fui sempre casado com a mesma mulher e vou acabar assim”. Casou em agosto de 1974, tem dois filhos e cinco netos mas faz questão de ir tentando manter alguma privacidade em relação à vida pessoal. Nos tempos livres, que agora quando surgem são “investidos” em jantares com a família, tem um grupo de amigos com quem gosta de jogar às cartas e dominó (mas com quem não tem passado nesta fase muito tempo). Diz não ter mau perder mas no jogo da bisca que fez com a apresentadora esteve mais concentrado nas cartas do que propriamente na conversa. E foi por isso também que, bem antes do final, já tinha percebido que a vitória estava conseguida.