A virilidade estabelecida na Roma Antiga ainda é um modelo para homens do século XXI. Implica um padrão de comportamento sexual, social e familiar que culmina no ideal do marido ativo, possante e procriador, tão corajoso quanto comedido, capaz de conjugar segurança e maturidade, certeza e dominação, ascendência sexual e psicológica, autoridade física e moral. Mas – há quase sempre um “mas” – a virilidade é também uma noção histórica e antropológica, pode manter características ao longo dos séculos e ao mesmo tempo adaptar-se a diversas realidades sociais, ao mundo urbano ou rural, ao homem guerreiro ou ao letrado. É uma característica em permanente transformação e só aparentemente inata.

Eis o ponto de vista de “História da Virilidade 1”, livro organizado pelo sociólogo francês Georges Vigarello e publicado em Portugal nas últimas semanas de 2018 pela editora lisboeta Orfeu Negro. A este primeiro volume seguem-se mais dois, com data prevista de saída para o segundo semestre deste ano e inícios de 2020, de acordo com a editora.

A capa e a contracapa apresentam motivos fálicos em tons rosa. No interior, 600 páginas divididas em seis partes, da Grécia Antiga até ao Iluminismo no século XVIII. Com linguagem explícita, mas sempre em tom académico, o livro começa por explicar que a palavra grega “andreia”, que em latim terá o equivalente “vir” (origem de “virilidade”), aparece escrita pela primeira vez 467 anos antes de Cristo, na tragédia “Sete Contra Tebas”, de Ésquilo, e significa então coragem física num campo de batalha, audácia na adversidade e um sentido de obediência às leis ou ordens recebidas.

A “andreia” era uma característica atribuída aos varões, mas também se reconheceria em algumas mulheres. Tinha códigos ao nível da aparência física. “Apesar de os critérios do belo variarem ao longo do tempo, a celebração da beleza permanece uma constante do elogio masculino e certos traços formam mesmo uma constante da virilidade: uma pele morena (as mulheres, pelo contrário, são brancas), a musculação protuberante, o corpo não depilado”, lê-se. Isto porque a depilação era entendida como um desejo de conservar o aspeto adolescente, logo, uma negação do homem adulto.

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Pederastia dos 12 aos 21 anos

Na ilha de Creta e na cidade-estado de Esparta os jovens eram obsessivamente treinados para a o combate militar, enquanto em Atenas a educação viril privilegiava outro tipo de masculinidade, como o bom uso da palavra. Em comum, a iniciação dos adolescentes favorecidos através de práticas eróticas, a pederastia.

“O termo homossexualidade, [então] completamente ausente da língua grega, deve ser afastado tanto quanto possível, já que pressupõe categorias comportamentais permanentes que são estranhas aos gregos”, escreve o historiador Maurice Sartre.

Na Grécia Antiga, a relação sexual entre jovens de boas famílias e homens mais velhos “não une dois indivíduos que tentam atingir o prazer procurando satisfazer também o parceiro, mas antes um dominante e um dominado – poder-se-ia dizer, de uma forma mais crua, um penetrante e um penetrado”. Ou seja, “um macho dominante, que está no seu papel de macho, e um homem dominado como uma mulher”.

O dominado, que poderia ter entre 12 e 21 anos, assume um papel que a sociedade valoriza, até porque “esta busca erótica masculina diz respeito à esfera pública, não à esfera privada, não se trata de uma relação amorosa íntima, mas sim de uma conquista que só tem sentido se for revelada publicamente”. Ainda assim, “a virilidade situa-se claramente do lado do penetrante”, acrescenta Maurice Sartre, notando que as fontes hoje disponíveis mostram mais os comportamentos esperados do que a realidade concreta que se vivia.

“História da Virilidade 1 – A Invenção da Virilidade. Da Antiguidade às Luzes”, com organização de Georges Vigarello. Ed. Orfeu Negro; 600 páginas, 25,50€

Júlio César era “a mulher de todos os homens”

O mesmo se lê em relação à Roma Antiga, de que são fontes leis ou textos literários satíricos. Escreve o latinista Jean-Paul Thuillier que o homem romano valorizava o corpo bronzeado, porque a brancura da pele era “sinal de feminilidade”. Procurava a atividade desportiva frequente ao ar livre, porque um corpo viril era um corpo atlético. E ostentava pelos corporais e barba (sinal de virilidade até 300 antes de Cristo e novamente um costume no início do século II, com o imperador Adriano). Tudo com moderação, porque em Roma “não há nada mais feminino do que ocupar-se continuamente com o seu corpo e dedicar-lhe todos os cuidados”.

Do romano se esperava que nunca demonstrasse comoção em público. “Dominar a mulher, dominar o outro, o estrangeiro, o inimigo, é de alguma forma inerente ao homem romano”. Esse domínio passava obviamente também pela sexualidade: ao contrário dos gregos, os latinos não permitiam relações sexuais entre homens mais velhos e adolescentes bem-nascidos, os cidadãos, porque a educação destes estava apenas a cargo da família – e daí a relevância do conceito romano “paterfamilias”, que chegou aos nossos dias.

Apenas jovens escravos ou prostitutos poderiam ser usados por homens e desde que estes detivessem a posição ativa. Júlio César teve sexo frequente com mulheres casadas, mas também uma relação passiva com o rei da Bitínia, cerca de 80 a.C., e por muito tempo seria escarnecido como “o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”.

Homem, uma construção

Não é certo, mas é provável, que o organizador da obra e os 16 historiadores, linguistas e sociólogos que assinam os vários capítulos partilhem o pós-estruturalismo em voga nos meios académicos, uma corrente de pensamento segundo a qual o masculino e o feminino, os homens e as mulheres, resultam de narrativas e construções sociais, culturais ou políticas. Esse ponto de vista parece presente em quase todos os textos.

[vídeo promocional da edição original francesa de “História da Virilidade”, sem legendagem]

A própria responsável editorial da Orfeu Negro, Patrícia Guerreiro Nunes, explicou ao Observador que o livro faz uma “abordagem genealógica da virilidade” e demonstra que, “tal como as mulheres não nascem mulheres, são depois conformadas a tal género, o mesmo sucede com os homens”. Segundo a mesma responsável, a obra aponta para a ideia de que “a dominação masculina atua sempre em dois sentidos, numa violência sobre o feminino, mas também numa violência interna, que obriga [os homens] à conformação a determinados comportamentos e códigos”.

Quanto ao período medieval, do século V ao século XV, é dito que a mesma ideia de virilidade é comum a nobres, camponeses e aldeões. No trabalho e na vida doméstica, na caça ou na agricultura, os gestos do homem opõem-se aos da mulher. “O gesto do homem é amplo, mobiliza toda a força muscular e cumpre-se até ao fim. É libertador da energia do corpo. Pelo contrário, o gesto da mulher é curto, repetitivo, obedece a um ritmo de vaivém, por exemplo, engaçar, raspar, trabalhar com o tear.”

Com a Modernidade, e logo no início do século XVI, a força rude começa a ser rejeitada e dá-se um rutura: “A força não é trazida para primeiro plano, prevalecendo a sageza, a contenção, a prudência ainda, se não mesmo a circunspeção”, escreve Vigarello. O homem completo já não se limita à bravura e “o modelo da esbelteza e da magreza impõe-se nas referências sociais”, não só entre as elites. Instalam-se conceitos de refinamento, urbanidade e cortesia, o que merece críticas de intelectuais como Montaigne, que no fim do século XVI vê s homens ameaçados pelo efeminamento, porque a delicadeza seria a negação do viril.

Uma série sobre género e raça

A tradução, de Anabela Carvalho Caldeira e José Alfaro, com revisão de Nuno Quintas, constituiu um “enorme esforço”, de acordo com a responsável editorial, e incluiu a supressão de “algumas incoerências ou falhas bibliográficas” do original, bem como “consulta a vários especialistas da área”.

O livro saiu em França há oito anos e chega a Portugal com o apoio do Instituto Francês e do Ministério da Cultura de França. Integra uma série da Orfeu Negro dedicada a temas de género e raça, iniciada em 2016 com a publicação de “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes, a que se seguiram “Problemas de Género”, de Judith Butler, e “Não Serei eu Mulher?”, de Bell Hooks.

Esta série “pretende ser o mais abrangente e inclusiva possível”, disse Patrícia Guerreiro Nunes.

“Surge com o objetivo de colmatar o grande vazio editorial que se sentia nesta área em Portugal e amplificar o debate social em torno das questões de género. Este vazio tornou-se particularmente evidente quando Judith Butler esteve em Lisboa, em 2015, para uma conferência no Teatro Maria Matos: um auditório esgotado para a ouvir e nenhuma tradução sua por cá publicada”, acrescentou.

Ainda este ano, a mesma série incluirá uma tradução de “Plantation Memories”, da artista portuguesa radicada em Berlim Grada Kilomba, e “Manifesto Contra-Sexual”, do filósofo transgénero Paul B. Preciado, entrou outros títulos.

Ressalvando que a editora “não tem o hábito de segmentar públicos”, Patrícia Guerreiro Nunes explicou que “História da Virilidade” pode ser “particularmente apelativo” para “amantes e estudiosos” da história e dos estudos de género.