Uma “perda de tempo para toda a gente” e um “falhanço”. Foi assim que o líder da oposição britânica, Jeremy Corbyn, classificou a decisão da primeira-ministra, Theresa May, de adiar a votação sobre o seu acordo para o Brexit para tentar conseguir mais garantias junto dos líderes europeus relativamente ao backstop, o mecanismo encontrado para resolver o problema da fronteira na Irlanda do Norte, que tanto preocupa os deputados.

As críticas foram feitas no debate quinzenal com a primeira-ministra, na Câmara dos Comuns, o primeiro da semana de debates prevista sobre o acordo para o Brexit que a primeira-ministra propõe e que será votado na próxima terça-feira, dia 15 de janeiro.

Na manhã desta quarta-feira, um conjunto de deputados conservadores e trabalhistas uniu-se para propor emendas que dificultam a vida ao Executivo de May e que obrigam a primeira-ministra a divulgar uma alternativa ao Parlamento em caso do chumbo do seu acordo em apenas três dias. A proposta foi aprovada por John Bercow, presidente da Câmara, numa decisão polémica que muitos creem ter aberto um precedente parlamentar e que provocou uma acalorada troca de acusações nos Comuns.

O resultado revelou ser outra derrota para May: 308 deputados apoiaram a moção que a obrigava a mostrar o seu plano B aos deputados em apenas três dias, em caso de chumbo. Embora o tempo esteja frio nas ruas de Londres, a temperatura promete manter-se quente dentro de Westminster nos próximos dias.

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Oposição acusa PM de estar “congelada no seu próprio falhanço” e a “pedinchar palavras meigas aos líderes europeus”

No debate desta quarta-feira, a oposição liderada por Corbyn desvalorizou os esforços de May em Bruxelas e as alternativas propostas pelo Executivo para facilitar a aprovação do acordo como a concessão ao Parlamento da Irlanda do Norte para que aprove todas as medidas relacionadas com o backstop. “Nenhuma operação cosmética vai satisfazer os membros desta Câmara”, resumiu o líder trabalhista, que acusou May de andar “a desperdiçar o tempo de todos de forma imprudente, numa tentativa de chantagear os deputados para que aprovem o seu acordo impopular”.

A primeira-ministra andou a pedinchar palavras meigas aos líderes europeus, mas não conseguiu que fossem alterados um único ponto ou vírgula”, declarou Corbyn.

As palavras de Corbyn surgiram depois de, pela manhã, alguns deputados trabalhistas terem deixado claro que, em caso de chumbo, o partido irá muito provavelmente apresentar uma moção de censura ao Governo. O mais certo é que, nesse cenário, qualquer moção conte com o apoio dos nacionalistas escoceses do SNP. Ainda esta quarta-feira, no debate quinzenal, o líder parlamentar Ian Blackford acusou May de estar “congelada no seu próprio falhanço” e a pedir aos deputados que “assinem cheques em branco”.

A primeira-ministra respondeu às críticas mantendo o mesmo discurso que tem tido nos últimos meses, sublinhando que este é “o único acordo possível” e que é “um bom acordo”. “Tenho estado em contacto com os líderes europeus a propósito das preocupações dos deputados”, assegurou. “Estas conversas revelaram que é possível haver uma maior clarificação na questão do backstop e essas conversas irão continuar nos próximos dias.”

Aos deputados que a interrogaram com o que creem ser uma falta de avanço nas negociações, May voltou a sublinhar que “em cima da mesa está um bom acordo, que protege os empregos e a segurança” do Reino Unido. E deixou também algumas insinuações sobre Corbyn a pairar no ar, acusando-o de inconsistência. “Já foi contra e a favor da liberdade de circulação, já foi contra e a favor da união aduaneira, já foi contra e a favor de uma política comercial independente…”, declarou.

Se quer evitar um não-acordo, [Corbyn] tem de apoiar um acordo”, disse May. “Portanto, talvez possa mudar de hábitos e tomar uma decisão, para variar.”

A primeira-ministra rejeitou por completo o cenário de eleições antecipadas caso o acordo seja chumbado, mas foram muitas as questões que ficaram sem resposta. “O acordo dela está mais morto que o dodô mais morto”, afirmou o escocês Peter Wishart referindo-se ao animal que está extinto desde o século XVII. “Quando é que ela vai entender isto? E, por amor de Deus, quando é que vai embora?”, questionou. May preferiu não responder, focando-se apenas nas pulsões independentistas do SNP e acusando-os de não quererem o melhor para os escoceses.

Divisão nos tories acentua-se: aliança de alguns conservadores ao Labour provoca debate aceso com presidente da Câmara

Da mesma forma, a primeira-ministra não respondeu durante o debate sobre se considera a possibilidade de atrasar ou suspender a aplicação do Artigo 50, ou seja, se admite que a data de saída de março de 2019 possa ser suspensa ou atrasada devido ao chumbo do acordo.

Por não ter respostas concretas de May, o Parlamento britânico parece estar decidido a forçar-lhe a mão e a extrair-lhe respostas à força. Na véspera do debate, 20 deputados do Partido Conservador de May, onde se incluem alguns ex-ministros da própria como Jo Johnson ou Sam Gyimah, juntaram-se aos deputados trabalhistas para apoiar uma emenda do deputado conservador Dominic Grieve que obrigará May a apresentar ao Parlamento um plano B, em caso de chumbo do acordo, em apenas três dias.

A proposta, apresentada na Câmara depois do debate quinzenal, conseguiu fazer com que os ânimos se exaltassem, devido à posição do presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, que autorizou o debate e a votação dessa emenda — muito embora a proposta de emenda tenha sido feita por deputados e não por membros do Governo, como é procedimento habitual. “Em 18 anos como deputado, nunca vi isto, um presidente a sobrepor-se a uma moção da Câmara”, declarou o deputado conservador e pró-Brexit Mark François.

Agora tenho a impressão de que o nosso árbitro já não é neutro”, acusou outro Tory, Crispin Blunt, referindo-se ao presidente da Câmara, John Bercow.

Outros deputados questionaram igualmente a independência e integridade do presidente, tendo algumas vozes apontado para um autocolante anti-Brexit que estará no carro de Bercow, que se justificou dizendo que esse é um autocolante do carro da sua mulher, que tem “direito às suas próprias ideias”.

A decisão de Bercow vai de facto contra o que é habitual nos procedimentos da Câmara, razão pela qual a editora de Política da BBC, Laura Kuenssberg, a classificou como sendo “muito importante” e algo que “cria um grande precedente”. Bercow, contudo, afirmou nos Comuns que é importante estabelecer a distinção entre uma moção e uma emenda e disse que a Câmara não pode guiar-se “apenas” pelo precedente. “O meu trabalho não é ser um cheerleader do poder executivo, o meu trabalho é o de defender os direitos da Câmara dos Comuns”, defendeu-se.

Com a proposta da emenda a ser votada, o Parlamento pronunciou-se: 308 votos a favor de que, em caso de chumbo, May apresente uma alternativa em três dias, 297 votos contra. Mais uma derrota para Theresa May, que enfrenta um grupo de deputados cada mais frustrado com a condução de todo este processo.

A votação final sobre o acordo de saída assinado com a União Europeia está marcada para dia 15, mas não têm surgido sinais de que os deputados descontentes possam estar dispostos a aprovar a proposta de May. Ainda esta quarta-feira, os unionistas da Irlanda do Norte (DUP), parceiros de May no Parlamento que estão descontentes com a questão do backstop relembraram que as propostas da primeira-ministra de devolver algum poder ao Parlamento local “não tem uma importância real”.

E o DUP não é o único a pensar assim. Um estudo da Universidade Queen Mary de Londres, divulgada esta quarta-feira, diz que 70% dos deputados consideram que May tem feito um “mau trabalho” relativamente ao Brexit. E até dentro do seu próprio partido, são mais os que concordam com esse afirmação (47%) do que os que a defendem (34%). Os próximos dias prometem continuar quentes.