A primeira vez que ouvimos Celeste (Raffey Cassidy) cantar em “Vox Lux”, a segunda realização do ator Brady Corbet (“A Infância de um Líder”), estamos em 1999. Ela vai a caminho dos 14 anos e sobreviveu a um massacre como o de Columbine no seu liceu. É a vigília de homenagem aos alunos e professores mortos na tragédia, e a canção triste e sentida que Celeste escreveu com a irmã, Ellie (Stacy Martin) é ouvida em direto na televisão ao longo dos EUA e transforma esta adolescente anónima numa vedeta nacional. A sua história é o sonho de qualquer editora de discos e do seu departamento de “marketing”, ou de um estúdio de cinema. E Celeste arranja um agente sabido (Jude Law), e um contrato para gravar um disco, dar concertos, fazer digressões e dar os primeiros passos no caminho da sua transformação numa estrela pop “teen” como manda o mercado.

[Veja o “trailer” de “Vox Lux”]

“Vox Lux” dá então um salto de quase 20 anos e quando reencontramos Celeste, agora na pele de Natalie Portman, não há nela o menor vestígio da miúda doce que cantou na vigília às vítimas do tiroteio no seu liceu. É agora uma batida diva “pop” de 30 e tal anos, cínica e arrogante, caprichosa e errática, com uma filha adolescente, Albertine (de novo Raffey Cassidy), e continua a ser uma sobrevivente. Bebe e droga-se, esteve metida num escândalo envolvendo um desastre de automóvel e está a tentar reativar a carreira, com um novo álbum e uma digressão que abre com um concerto na sua Staten Island natal. Celeste apresenta-se como um compósito extremado, parte realista, parte satírico, de Madonna, Lady Gaga, Beyoncé e Katy Perry, um animal de palco e uma fúria para todos os que a rodeiam fora dele, mas que tem episódios de genuína ternura, vulherabilidade e lucidez.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja a entrevista com Natalie Portman]

E se nestes quase 20 anos muito aconteceu a Celeste para a transformar naquilo que é agora, também aos EUA, e ao mundo, sucederam coisas muito graves: os atentados de 11 de Setembro, o advento do terrorismo global, uma colossal crise financeira, alterações políticas sísmicas. A própria Celeste acaba de saber que um grupo terrorista fez um atentado num país balcânico usando adereços iguais aos do seu último vídeo musical. Em “Vox Lux”, Brady Corbet utiliza a personagem de Celeste como um correlativo ambulante, uma caixa de ressonância viva, do mal-estar que atingiu o seu país e todo o planeta desde o início deste século. Ao mesmo tempo, quer que ela também valha por si, tenha identidade e humanidade, e não se reduza a uma caricatura ou um estereótipo do vedetismo “pop” e do seu mundo artificial, estridente, superficial e alienante.  

[Veja a entrevista com Raffey Cassidy]

“Vox Lux” é um filme tão ambicioso e arrojado como desequilibrado e simplista. Quer disparar em muitas direcções, correr a vários carrinhos, falar do mais pessoal e íntimo como do mais coletivo e global, discorrer, através de Celeste, sobre o estado anímico, as inquietações e o mal-estar que atingem os EUA e a humanidade em geral, pronunciar-se sobre o terrorismo, a incerteza geral e os medos sociais na nossa época. E mais: sobre o enorme preço cobrado pela celebridade, a erosão da privacidade e o voyeurismo da intimidade nestes tempos de media agressivos e de redes sociais impiedosas, sobre o fenómeno das estrelas “pop” mundiais e a massificação embrutecedora da indústria musical e do espectáculo em geral (“Eu não quero que as pessoas pensem muito. Só quero que se sintam bem”, diz Celeste a certa altura).

[Veja uma cena de “Vox Lux”]

Brady Corbet esforça-se muito, inegavelmente, para que tudo isto coagule, tenha unidade e consistência, bata certo, mas o seu discurso narrativo é prolixo e tonitruante, o seu gesto cinematográfico arrevesado e desnivelado, e o traço do filme sai muito grosso. Restam Raffey Cassidy, que no seu duplo papel de jovem Celeste e de filha desta, é a revelação de “Vox Lux”; e Natalie Portman, que dá absolutamente tudo numa Celeste tão monstruosa como patética, mexendo-se ao som de música de Scott Walker e cantando canções compostas por Sia como se tivesse nascido para arrastar atrás de si multidões de adolescentes em histeria brandindo os seus “smartphones”. Mas sozinha, Portman não é suficiente para dar ordem, clareza e estabilidade a este híbrido mal resolvido de radiografia da nossa época e psicodrama de uma “pop star” que tenta prolongar o seu prazo de validade.