Nome: “As Variedades da Experiência Religiosa”
Autor: “William James”
Editor: “Relógio d’Água”
Páginas: 416
Preço: 23,00€

Convidado para participar nas Conferências Gifford da Universidade de Aberdeen, em 1901 William James escreveu a série de vinte conferências que viria a originar As Variedades da Experiência Religiosa. Nessas conferências, o psicólogo procura compreender o fenómeno religioso a partir das experiências místicas de génios religiosos que, a seu ver, foram fundamentais tanto para fundar como para moldar a relação com Deus daqueles que James designa por crentes em segunda mão (isto é, crentes sem um acesso imediato a Deus). Preocupado apenas com estes momentos dos quais a religião obtém força, James descreve-os como ocorrências que apenas se verificam “em indivíduos para quem a religião existe não como um hábito néscio, mas sim como uma febre aguda” (p.26).

O mote de William James nunca é, como se imaginaria, o de procurar justificar a fé em Deus através de um qualquer impulso biológico ou de uma concepção primária e simplista do mundo, mas antes o de, a partir de uma abordagem pragmática e empirista, procurar analisar um fenómeno ao qual não consegue aceder e que tem dificuldade em entender. Em nenhum momento, o estudo de James diminui ou menospreza a importância do fenómeno religioso. James rejeita liminarmente que explicar a origem de um fenómeno sirva para justificar o seu significado, atacando aqueles que acreditam que emoções religiosas são apenas simples variações de emoções sexuais, ou que Lutero avançou para a reforma protestante apenas para poder casar com uma freira, quando os efeitos destes ímpetos são infinitamente mais amplos do que as suas alegadas causas. Ainda que, para James, os fenómenos religiosos nasçam no nosso corpo e tenham uma justificação subconsciente, em nenhum momento propõe que esta teoria exclua a possibilidade da existência de Deus.

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Quanto a comunidades religiosas em geral e à Igreja Católica em particular, a posição de James é já menos conciliadora, por motivos fáceis de entender. A certa altura, num momento atipicamente violento, James ataca intelectualismos religiosos que pretendam inferir Deus a partir de raciocínios e não de experiências místicas. Diz James que a experiência religiosa é essencialmente pessoal e individual e que escapa à expressão, sendo a inteligência e a conceptualização já exercícios de mediação que acarretam, por isso, uma perda. Este ataque à teologia sistemática que assume que a religião deve estar associada a pensamentos e não a sentimentos leva James a descrever pessoas que, como o cardeal Newman, procurem Deus por métodos racionais e dedutivos como “o tipo mais desprezível e vil à face da terra, [como] invenções inúteis de espíritos letrados” (p. 355). William James ridiculariza posições deste género ao perguntar se algum mártir estaria disposto a morrer por uma mera inferência religiosa e ao postular que toda a teologia sistemática é destruída por Job quando o pobre desgraçado grita: “Ponho a minha mão sobre a boca; os meus ouvidos ouviram falar de Ti, mas agora veem-Te os meus próprios olhos” (p.356).

James explica que de uma experiência mística três consequências são possíveis: ou nada se gera, ou se forma uma heresia sectária ou surge uma ortodoxia e, com isso, uma nova religião. Destas três alternativas, apenas a terceira conduz a censuras por parte de James, uma vez que a ortodoxia que se gerar irá imediatamente tentar secar a fonte de experiências religiosas imediatas, negando-as como heresias sempre que não são herdeiras directas e totalmente legitimadas da experiência inicial. Isto conduzirá, ainda segundo o filósofo americano, a imperialismos e intolerâncias que James repudia.

James parodia em vários momentos a Igreja Católica, como quando lamenta não poder recorrer ao aparelho conceptual e aos dogmas absolutos desta que restringem convenientemente os problemas, ou quando ataca a obsessão católica pelo pecado, nunca sem deixar de reconhecer, neste último caso, que o extremo oposto levaria a crenças abomináveis e absurdas como a teoria do aperfeiçoamento perpétuo e da possível erradicação do mal que alguns ramos do protestantismo americano herdeiros de Darwin formulavam no fim do século XVIII. Todavia, é o papel mediador da relação com Deus que William James parece ter mais dificuldades em aceitar, ou não estivesse James muito mais do lado de Walt Whitman e Emerson do que do lado do cardeal Newman, mais do lado de Jordan Peterson e Camille Paglia (ainda que ambos não se aproximem, por um segundo que seja, da robustez intelectual do autor de Variedades da Experiência Religiosa) do que do lado do Papa Francisco.

Ao interessar-se apenas por experiências religiosas não mediadas, James reconhece que não podemos conhecer mais do que uma ideia extraordinariamente vaga do rosto de Deus. A experiência religiosa não tem, portanto, tanto a ver com uma vida após a morte, mas antes com um acesso a um lado de nós próprios que nos está normalmente vedado. Desta forma, em noventa porcento das experiências que interessam a James, os génios religiosos ficam apenas às portas de um céu nublado, sem qualquer conhecimento teológico profundo, tornando-se assim indistinguíveis quer os santos gerados pelas várias religiões, quer as próprias religiões desses santos, visto que o ponto de vista pragmático que James ocupa leva-o sempre a procurar conhecer e distinguir as árvores pelos seus frutos (o que não equivale, como se explica na conferência XVIII, a acreditar que todas as religiões são iguais).

Talvez o exemplo do ataque que James faz a São Luís de Gonzaga seja o mais elucidativo da perspectiva das Variedades da Experiência Religiosa. Ainda que reconheça o papel fundamental do ascetismo na experiência religiosa, William James diz ter dificuldades em compreender excessos de obediência e pureza e usa o caso de São Luís de Gonzaga, um homem que “recusava sistematicamente reparar no que o rodeava” (p. 285), para ilustrar a sua posição.

James descreve a pureza do santo italiano como uma pureza que reduz o mundo, fugindo dele, e não nutre grande admiração por este tipo particular de santidade à maneira do século XVI que, de acordo com James, não gerou qualquer fruto, acrescentando ainda que “quando o intelecto, como o deste Luís, não é maior do que a cabeça de um alfinete e nutre a respeito de Deus ideias igualmente minúsculas, o resultado, independentemente do heroísmo evidenciado, é globalmente repugnante” (p. 286). Todavia, William James vai ainda assim procurar uma perspectiva generosa para com o santo que visivelmente despreza, ao reconhecer que a santidade não produz resultados absolutos mas que se limita a fazer o que pode dada a matéria-prima que lhe foi dada (que, de acordo com o que afirma, teria sido manifestamente pouca). Assim, numa nota algumas páginas mais à frente, James concede: “Todos conhecemos santos tolos que inspiram uma certa repugnância. Mas, ao comparar os santos com os homens fortes, temos de escolher indivíduos com o mesmo nível intelectual. O homem forte pouco inteligente, homólogo na sua esfera do santo pouco inteligente, é o rufia dos bairros de lata, o arruaceiro ou o brigão. Também a este nível o santo evidencia, sem dúvida, uma certa superioridade” (p.300).

Tornou-se recentemente lei incluir em todas as análises de textos com mais de cinquenta anos uma reflexão leviana acerca de como a referida obra é ainda hoje tão actual. William James não rasgaria as vestes diante da predominância que a percepção dos factos tem hoje em relação aos factos propriamente ditos. O problema para James estaria antes no total desaparecimento de noções como introspecção ou ascetismo, o que impede que esta relação imediata e pessoal com o mundo não possa gerar qualquer fruto, tornando-se apenas uma expectoração preguiçosa.

joaopvala@gmail.com